sexta-feira, 30 de janeiro de 2009



Patras, Grécia


El tiempo es la substancia de que estoy hecho.
El tiempo es un río que me arrebata,
Pero yo soy el río;
Es un tigre que me destroza,
Pero yo soy el tigre;
Es un fuego que me consume,
Pero yo soy el fuego.

Jorge Luis Borges

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Mind the gap




Underground, Londres

À fim de que ninguém perca seu pé no vao existente entre a plataforma e o trem, uma voz no Metrô de Londres fica constantemente repetindo o aviso "Mind the Gap". Esta frase já está tao incorporada à vida do londrino que passou a sinonimizar o próprio Underground da capital britânica. É um aviso curto e suscinto - quase uma questao de estímulo-resposta.

Do outro lado do Canal da Mancha, a mesma advertência poderia figurar num poema: "Attencion a la marche en descendant du train". A pessoa já poderia ter perdido o pé antes de escutar tudo até o final.

Cruzando o Reno, lê-se na Alemanha "Ausstiegvorsicht": informacao sintética e condensada, mas agressiva para os olhos que a lêem e aos ouvidos que a escutam. Além de totalmente incompreensível para quem nao sabe nada (ou muito pouco) de alemao.

Em Madri, uma voz feminina furiosa incita os passageiros a terem "cuidado para no meteren el pié entre coche y andén" nas "estaciones en curva". Aqui se obedece mais pelo tom enérgico do aviso do que pelo medo da amputacao.

É por estes e outros motivos que, de todas as línguas indo-européias, o inglês seja aquela mais próxima de um código do que de um idioma. Se um robô tivesse língua, essa língua seria o inglês. O mesmo vale pra um computador que falasse ou escrevesse sozinho.

Nao é a toa que uma filosofia tao lógica quanto a analítica tenha surgido e vigore por lá. Pena que ler Russell nao seja tao legal quanto passear em Londres.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Outono / Inverno



Platanenallee, Neckarinsel, Tübingen

Até agora minha estacao favorita na Alemanha é o outono. O inverno, a princípio, parece muito bonito, mas logo em seguida a vista comeca a cansar de tanto branco; o corpo cansar de tanto frio. É o inverno mais gelado dos últimos anos no velho mundo. Semana passada o termômetro ficou patinando na dezena negativa e a Rússia assustando o resto da Europa com a ameaca de cortar o nosso gás. Afora que a neve, apesar de bonita, origina uma série de incômodos. Houve um dia em que os ônibus simplesmente nao conseguiram subir até a parte alta da cidade. Quando ela se acumula nas calcadas e as pessoas pisam, surge uma massa informe e escura de sujeira e gelo que nossos tênis e calcados insistem em convidar para dentro de casa. O inverno também é pródigo nas poucas horas e mínima intensidade que o sol brilha quando resolve dar minimamente as caras. Anoitece pelas quatro da tarde e, quando é meio dia, nao se distancia quase nem dois palmos do horizonte. É uma esfera amarelada e tímida, retraída como toda a gente fica com essa temperatura. Acaba sendo bom para ficar em casa ou rolar montanha abaixo em trenozinhos de madeira ou plástico, que sao aparentemente a única diversao em espaco público - terminados os mercados de natal e construídos todos os bonecos de neve - que os alemaes se propoem a fazer com gosto nessa época.
O outono é que é o bom. Por mim, eu viveria num outono alemao eterno.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Bonaparte



Les Invalides, Paris

A escultura acima é uma das várias alegorias ao código napoleônico que velam o corpo do sujeito de 1,67 m que durante o século XIX destronou praticamente todas as monarquias relevantes do continente Europeu e expandiu, ainda que sob a chaga da Guerra, os princípios da revolucao de 1789 para além das fronteiras francesas e mudou para sempre a história da Europa e do Mundo.
Napoleao entrou em Madri acompanhado de 305.000 soldados. Algo como meia Stuttgart marchando de uniforme. Outros milhares foram enviados para batalhas célebres como Austerlitz e Jena; muitos outros pereceram em derrotas como Trafalgar e Waterloo. Tudo nessa época soa como gigantesco, fáustico, além da imaginacao. Contra Napoleao, um outro gigante também lutava. Talvez deficitário de uma figura emblemática para inflar os brios dos seus soldados e da sua populacao, mas em todo caso uma verdadeira máquina de guerra, composta por 880 navios bem organizados e munidos, com a possibilidade constante de repor as perdas materiais através da sua impressionante atividade industrial. Num tempo em que Bonaparte arrasava o continente a Gra-Bretanha o oceano, nao havia mais espaco para nacoes carolas e supersticiosas como Portugal. Ao contrário dos seus pares soberanos (vários deles seus parentes), que acabaram bem ou mal descoroados, D. Joao fez a escolha mais acertada: reconhecer sua pequenez, deixar que o palco fosse ocupado pelos atores principais e retirar-se para longe, bem longe, de tudo isso. Bom para si, que nao perdeu o cetro. Ruim para o povo portugues, que viu a si próprio ser arruinado nos anos de Guerra Peninsular, na maior onda de miséria e fome já vivenciada em território luso.

Napoelao pode ser entendido como um dos fundadores da Modernidade, nao necessariamente naquilo que ela possui de melhor. Antes dele, o poder dos soberanos se justificava de forma muito mais simples e contentadora. Havia uma fronteira, um vácuo metafísico entre soberano e povo - simplesmente nao compartilhavam da mesma substância, da mesma natureza. Em algum ponto obscuro do tempo (ou fora dele, se considerarmos as doutrinas em que o poder real emanava de Deus, e portanto, de uma esfera "fora" do tempo, alocada na eternidade), foi conferida à uma sorte de homens o direito de comandar os outros e era conveniente que se pensasse assim. Com a equalizacao de todos os sujeitos, através do humanismo iluminista, ser um soberano absoluto tornou-se muito complicado. Alguns poderiam até mesmo pensar que isto seria impossível. Mas Napoleao provou que nao: é possível ser imperador e cantar a marselhesa ao mesmo tempo. Como fazê-lo? Sendo simplesmente Bonaparte - alguém cujo mito pessoal conviveu com o próprio ser humano de carne e osso: fazer-se imperador, ao invés de receber o título de nascenca; tornar-se com isso um emblema do homem que se auto-constrói, da infalibilidade do projeto pessoal, do criador e inventor da própria existência, que nao mede esforcos para realizar a construcao daquilo que se é.
Basta observar a imagem acima exposta. Nela, o imperador encontra-se no centro, impassível, quase um romano, mais forte e mais virilizado do que provavelmente fora. À sua direita, um anciao (filósofo?) lhe oferece o código de Justiniano. Sua mao recolhe desta lei antiga, porém sábia, apenas o mínimo necessário para a sacramentacao do outro código, à sua esquerda, que, como diz a inscricao abaixo "foi mais benfazejo à Franca que todo o amontoado de leis que o precederam".
A lei de Napoleao é benfazeja porque é "simples". Por simples, se entende o fato de que é compreensível a todos. Por "compreensível a todos" se entende o fato de que sob Napoleao a alfabetizacao se generalizou. Por "generalizacao da alfabetizacao" se entende o fato de todos poderem ler a letra da lei.
A alegoria prossegue à esquerda com um livro velho e desforme, composto por todas as demais leis, oriundas do costume, sendo rasgado violentamente por uma figura feminina. O passado nao mais importa. Curiosamente, o único passado relevante é o dos romanos, de onde provém a lei justiniana. A lei agora é limpa, clara, única e soberana. É impossível nao reconhecer sua validade. E sua validade está na ponta do indicador de Bonaparte, ponta esta que indica a quem se dirige seu valor: "pour tous".