O bibliotecário de Babel

terça-feira, 25 de maio de 2010

A última bandeira antes do nada


Dies Irae, dies illa
Solvet saeculum, in favilla
Teste David cum Sybilla!

Dies Irae, século XIII

Os pais de Malaquia e Giacopo haviam morrido. Um terrível incêndio havia consumido a casa velha em que a família morava, no entroncamento de duas estradas que conduziam a lugar nenhum. Para a gente daquele lugar, a propriedade dos Brindisi determinava uma espécie de limite intransponível, a última bandeira antes do nada, a aresta definitiva do mundo conhecido. A geração anterior daquelas pessoas – ponderavam elas – já havia se aventurado o suficiente ao cruzar o oceano e se assentarem, como o fizeram a duras penas, naquelas matas selvagens e carentes de civilização. Tributários, portanto, de uma diáspora forçada, não viam maiores motivos para adentrar ainda mais na imensidão verde à sua frente, repleta de bestas e bugres, que se estendia da cerca dos Brindisi até as portas do reino de Satã.
Ninguém sabia ao certo as causas motivadoras do incêndio. Sabia-se, contudo, que o plano habitava a mente de Nicola Brindisi desde o dia em que anunciara, colérico, que estava a um passo de cometer uma loucura. Era evidente que o incêndio havia sido criminoso. E era patentemente conhecido que o alvo da ígnea ira era a pobre mulher de Nicola. Ele, verdadeiramente, amava-a. Mas amava-a demais, o que fez com que também a detestasse num nível incompreensível para os padrões comuns. Peixe siciliano num cardume de piamonteses e lombardos, Nicola Brindisi destoava significamente da melodia coletiva local. Fleumático, mediterrâneo, enérgico, comprava briga com a mesma facilidade que se alcoolizava e distribuía, entre os conhecidos, pesadas ofensas e injúrias; tinha a imoderada mania de proferir as mais terríveis blasfêmias contra a Virgem e os mistérios da Igreja, então a única garantia que aquela gente possuía de alguma salvação. Dos serviços religiosos, fugia como quem foge da peste. E sobre a esposa, Pierina, descarregava um ciúme horrendo, doente em último grau, que não coadunava com a candura da pacata vida doméstica que ela levava.
Ao contrário do marido, Pierina Brindisi era um daqueles seres talhados com a matéria da compaixão. Resistia estoicamente às intempéries humorais de Nicola e, de quando em quando, encontrava tempo para cometer, aí sim, o único pecado possível para sua composição feminina e misericordiosa: furtava, sorrateiramente, um cigarro de palha do marido e fumava-o rapidamente, sem que ele conseguisse notar a efêmera produção de fumaça proibida. Pierina era vista com bons olhos pelos demais colonos e despertava em todos uma triste piedade. “Pobre mulher”, pensavam, “pertencendo a um homem deste tipo”.
Nos dois meses que antecederam o incêndio, ninguém mais a havia visto. Resignados, os gentios sabiam que as piores intenções de Nicola em breve se efetivariam. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. Ainda mais em caldo tão espesso e intragável quanto o produzido naquela casa. A última aparição pública de ambos deu-se na missa de Páscoa de um ano ruim, em que as guerras civis dos luso-brasileiros, habitantes da vasta planície para além daquelas serras, haviam deixado os colonos em grandes dificuldades. Pierina trajava um vestido sóbrio, além de um véu de renda preta cuidadosamente trançada em voltejos tão sinuosos quanto os vis pensamentos do marido. Ele, evidentemente, não assistira à celebração eucarística. Impaciente como era, ficara do lado de fora contando os minutos para que pudesse conduzi-la de volta a casa.
Três dias depois, aconteceu. Naquela noite, o crepidar da madeira incinerada fundiu-se ao bravio latido dos cachorros assustados e o histérico mugir das vacas. O fogo consumira, muito rápido, o último assentamento humano antes do nada. E com ele, a pobre alma da cândida Pierina, agarrada a um terço e uma imagem de São João. Do lado de fora, Nicola Brindisi tratava agora do próprio aniquilamento, conduzindo, antes disso, os pequenos rebentos Giacopo e Malaquia até a casa do marceneiro Giuseppe Togni para sua redenção. Mesmo tomado pelo demônio da ira, Nicola ainda tinha discernimento suficiente para saber que aquelas pobres crianças nada tinham a ver com os pecados imaginários de sua mãe. Salvá-los, comentava o povo, tinha sido o único ato lúcido daquele homem em vida. Três madrugadas depois, seu corpo de gigante egeu fora encontrado, com um tiro na têmpora, nas matas vizinhas à propriedade. Daquele momento em diante, nada mais restava aos dois meninos que lhes fosse seu, e pertenciam um ao outro de maneira incondicional: a Malaquia, restava Giacopo; a Giacopo,restava Malaquia.
Este era nove anos mais novo que aquele. Quando da tragédia da casa paterna, Malaquia não passava de um choroso e frágil bebê, carente de mãe. Giacopo, ao contrário, havia testemunhado tudo com a virgem retina que se possui, antes dos dez anos, para os arcanos da vida adulta. Em meio aos Togni, calava-se sobre o assunto, mas a família adotiva sabia que naquele garoto habitava, de um jeito ou outro, a imagem da cólera. Como conseqüência disso, o tratamento que dispensavam aos órfãos não era dos melhores, pois temiam que regalias excessivas despertassem neles os frutos temíveis que a semente paterna poderia engendrar. Com o passar dos anos, de fato, mais e mais se evidenciava em Giacopo o semblante do pai; a negra barba mediterrânea anunciava-se em precoces tufos dos treze aos dezesseis e os humores vesuvianos da linhagem paterna desvelavam-se pontualmente aqui e ali. Através de uma férrea disciplina, estas energias de outra maneira incontroláveis foram todas direcionadas para o trabalho, de modo que Giacopo tornou-se um príncipe entre os lavradores da casa Togni.
Malaquia, em contrapartida, reproduzia de forma cada vez mais evidente os traços lombardos e alpinos da gente de sua mãe. Enquanto o irmão enrijecia os músculos, Malaquia cultivava os olhos, o tatear dos dedos, o refinamento dos modos. O primogênito havia se tornado senhor de todas as enxadas; o caçula, mestre da linha e da agulha. Pautava seu dia com finos trabalhos domésticos e tudo aquilo que necessitasse de um apurado controle das minúcias manuais: caligrafia, pequenos restauros em velhas caixas e lampiões, costuras e ornamentos em madeira. Também passava os dias na companhia das mulheres. Os Togni, pais de cinco ítalas beldades, o tratavam como um adorável bibelô de cinzentos olhos à disposição das filhas, um instrumento do seu aprendizado e inculcação das prendas domésticas. Malaquia não era muito diferente, portanto, do que seria um gato de canina fidelidade ou um cão de felino adestramento, enquanto Giacopo vivia seu dia como se operasse a tração de um carro de boi. À pequena Rosa Togni agradavam as mãozinhas finas e delicadas, brancas como papel, com que Malaquia instaurava no mundo seus pequenos artifícios. Para ela, em particular, ele se configurava como um misto de irmão a ser cuidado e amigo a ser cultivado; um verdadeiro bichinho, com o qual expendia as horas a coser e pintar.
Em volta de tanta candura, no entanto, havia um traço bastante preocupante em Malaquia que atiçava temores entre os Togni, o carpinteiro e a mãe. Desde o dia em que aprendera as primeiras palavras, ele às dirigia tão e somente para o irmão Giacopo, seu primogênito e protetor. Este último havia se tornado o único interlocutor do anjinho de estuque, o que reforçava na cabeça do casal adotivo o temor das conseqüências de uma aliança mais forte entre os tributários da herança incendiária. Chegaram a conclusão, portanto, que aquilo não era problema deles, e assim que o primeiro dos infantes atingisse a maioridade, seriam instados a deixar o lar.
Livrar-se daquela família, em verdade, era algo que ao fim e ao cabo agradava a mente de Giacopo Brindisi. No fundo de sua alma etrusca, cultivava um tremendo apelo pela sua irascível liberdade, que via refletida na responsabilidade assumida para com o irmão. Os planos de Giacopo eram francos e diretos: assim que completasse seus dezessete anos – sob o signo de sagitário – reaveriam, por força dos sagrados direitos sanguíneos, o punhado de terra que lhes cabia e a casa incendiada pelo pai. Durante a noite, Giacopo embalava os sonhos do irmão menor com a soberana possibilidade de terem uma casa para si, sem os Togni e seu séquito feminino a tomar-lhes o tempo, o trabalho e as energias de viver. Internamente, Malaquia consternava-se com Rosa e a interrupção das cristalinas horas agradáveis passadas na companhia das agulhas, linhas, brocados, pigmentos e pincéis. Deixá-la, apesar de um evento triste, era, bem a verdade, um exercício necessário de devoção ao irmão e salvador.
Assim que deixaram o teto adotivo, os Brindisi iniciaram a hercúlea tarefa de reconstrução da casa paterna. O esqueleto rochoso, furado aqui e ali por resquícios de portas e janelas, ainda estava lá. Cabia agora preenchê-lo com a carne e as vísceras da vida em comum. Estes foram os únicos momentos da vida de Malaquia em que pegara mais pesado no trabalho, contribuindo, alegremente, com as lides do irmão. Juntos, ergueram paredes e telhados, portas e janelas, balcões e móveis, enfim, um lar.
Nos anos subseqüentes, a união dos irmãos mais e mais se reforçava, e quem enxergava, de longe, a última bandeira antes do nada, notava que dia após dia as paredes daquela casa pareciam se tornar mais grossas e sólidas, bem como seus fundamentos mais rochosos e profundos. Giacopo e Malaquia desenvolveram uma rotina em comum e uns hábitos estranhos. Comer do mesmo prato, por exemplo. Ninguém sabe como isso começou, mas o fato é que, garantidamente, durante as refeições, partilhavam do mesmo mel e do mesmo pão, numa dança coreografada de facas, garfos e colheres que nunca se chocavam entre si. As colubrinas línguas dos colonos, acostumadas a maldizer os outros para fugir do tédio, destilavam que seguramente os irmãos dividiam também o leito, e que sem sombra de dúvida Giacopo encomendaria em breve uns vestidos e pinturas de rosto para o irmão “rainha do lar”.
O festival de maledicências não durou muito tempo. Prontamente notaram os colonos que Giacopo não mediria forças em repetir as façanhas briguentas do pai, se o caso em questão fosse a defesa da honra fraterna. Após um incidente de queixos quebrados no armarinho dos Giacomazzi, os engraçadinhos pararam de importunar o Golias mediterrâneo com considerações daquele tipo, sabendo que, da mesma forma que haviam sofrido com os punhos de Nicola Brindisi, poderiam ter suas línguas perfeitamente controladas pela furiosa tectônica de placas que habitava as profundezas de Giacopo. Malaquia, da sua parte, estabelecia pouquíssimos contatos com o mundo exterior. Além de permanecer mudo para os estranhos, quase nunca saía da casa por eles reconstruída na fronteira do mundo com o lugar-nenhum.
Pois que Giacopo, labutando de sol a sol, tornara esta mesma casa rica e próspera, alcançando, pelo menos neste sentido, o respeito daquela gente menor. Nestes dias de vacas gordas, a casa dos Brindisi deixara de ser a última bandeira antes do nada para se tornar o primeiro estandarte antes de tudo, como se os irmãos fossem os lugares-tenentes de um modo de vida inescrutável e inviolável para o resto dos mortais. O sucesso material dos dois, organicamente vinculados pelos laços de sangue e daqueles hábitos curiosos, encontrou até mesmo admiradores silenciosos entre os colonos de lá. Cada um a seu modo, se tornava ainda mais belo e desenvolvido em suas qualidades. Malaquia, então com vinte e cinco anos, tornara-se uma espécie de pintura delicadamente tracejada sobre uma folha de papel. Seus olhos cinzentos e lisos cabelos louros conferiam-lhe algo de santo, ao mesmo tempo em que a rudeza honesta do irmão fazia-o assemelhar-se a um robusto Davi esculturado. Os dias de ambos eram pautados pelo rico gotejar dos preciosos segundos vividos juntos, comendo do mesmo prato, bebendo do mesmo copo.
Ainda nestes tempos de felicidade, o que sobrava em júbilo entre os Brindisi faltava como desalento na casa dos Togni. O velho carpinteiro, acometido de uma extrema melancolia sem origem manifesta, havia bebido quase tudo que cabia aos seus. O desinteresse pelo mundo e pelo trabalho acabou deixando as femininas flores do seu jardim à revelia das contingências ignaras e cruéis daquela província última, na qual viviam todos sob a marca do exílio. Não tardou, igualmente, para que as dívidas passassem a se acumular sobre a mesa da família Togni. E Giacopo Brindisi, então o mais próspero dos prósperos locais, havia se tornado seu maior credor. Um tanto por misericórdia e um tanto por vingança, fez ele então uma indecorosa proposta:
- O senhor nos dá a Rosa e metade de suas dívidas estarão perdoadas.
Os colonos tinham como hábito tratar suas mulheres, sobretudo as jovens, no mesmo registro em que lidavam com cabeças de boi. Não foi muito difícil, portanto, que o endividado velho ponderasse à favor da proposta, que no caso era quase uma intimidação. E foi assim que, para júbilo do seu irmãozinho, Giacopo resgatou-lhe o bem mais precioso de sua infância, conduzindo Rosa de volta ao seio de sua convivência principesca. Se era do gosto da menina aquele estado de coisas, pouco importava. Na última bandeira antes do nada, a única lei que então havia era o que fluía de Giacopo e Malaquia. Todo o resto, excedia.
Lá estavam, portanto, as três jovens almas submetidas a esta lei. Eram os termos por entre as quais a força desta regulação tácita circulava, o que não tardou a provocar ruídos. Giacopo notou, dentro de si, que um sentimento totalmente diferente de tudo o que até então havia sentido crescia por Rosa. Desde a época de criança achava-a bonita e graciosa. Estava agora notando-a como mulher. Os joguetes e risadas das duas crianças sob seu domínio, que coloriam os dias daquela casa, faziam algo ao mesmo tempo soberano e incômodo manifestar-se entre as suas pernas, como se tratasse de uma contrapartida física à intromissão feminina na tessitura de sua vida viril. Passou a enxergar – talvez imaginar – certos indícios de que também a moça era visitada pelo mesmo demônio que o tentava. Indícios fracos, como furtivos olhares, e indícios fortes, como os visíveis arrepios que o contato de seus dedos de Titã causava sobre a delicada penugem que cobria os braços e o pescoço de Rosa.
Entre estes ímpetos do baixo ventre e a sua realização, interpunha-se, entretanto, a infantil presença de Malaquia. De sol a sol, a vida da moça era preenchida pelas brincadeiras e ocupações domésticas que dividia com o crescido infante. Ou bem corte, ou bem costura; ou bem desenho, ou bem caligrafia. Não havia hora do dia em que Giacopo pudesse abordar o objeto do seu desejo sem que chamasse, por conseqüência, a atenção do irmão. E estas coisas ficaram ainda piores quando percebera, num dia de outubro, que o irmão trocara suas primeiras palavras sonoras com alguém que não ele. Sim, Malaquia passara agora a conversar com Rosa em sua aguda vozinha de coral, e ela não se furtava a ensiná-lo todas as cantigas possíveis na língua daquela terra e na da terra dos avós.
Como este estado de coisas havia se tornado insuportável, Giacopo resolveu valer-se da sua autoridade viril e declarou que daquele momento em diante tudo seria diferente. Contrairia Rosa em matrimônio e toda a rotina estava alterada. Haveria hora certa para começar a brincar e hora certa para parar. Hora para cantar e hora para se calar. Hora para levantar e hora para dormir. No dia seguinte, uma imensa tristeza abateu-se sobre o coração de Malaquia ao perceber que sobre a mesa não haviam dois, mas sim três pratos.
- Agora é assim – pontificou Giacopo – e não poderia ser diferente.
As mudanças introduzidas com aquelas núpcias trouxeram à casa dos Brindisi novamente o espectro de ser ali o último porto conhecido do mundo, lugar onde tudo começa lentamente a se esfalecer. As pessoas da vila eram bastante sensíveis às mudanças de humor vindas daquela casa, e sabiam, pela grossura relativa das paredes e o estado-da-arte da sua grama, se os deuses e demônios conspiravam pela felicidade ou infelicidade dos locais. De algum modo ainda desconhecido para aqueles que lá ainda moram, o que acontecia entre os Brindisi como que se espalhava pelas outras famílias de forma miasmática, e não foram poucas as casas com problemas na época da infeliz conjugação Malaquias – Giacopo – Rosa.
Com o matrimônio do irmão, contraído numa cerimônia triste e sem bênção, Malaquia havia se calado de forma definitiva para o mundo. Nem Giacopo, nem Rosa ouviam-lhe mais. Seus olhos tornaram-se ainda mais aquosos e cinzentos como se sobre eles se concentrassem todos os liames que sustentam o mundo, ao passo que os músculos de Giacopo, profundamente afetado com aquele silêncio inédito por parte do caçula, enrijeciam-se ainda mais na forja de uma agenda de trabalho campeiro mais e mais extensiva. Jogada à revelia daqueles dois mudos, Rosa contava, resignada e melancólica, com a possibilidade de morrer e livrar-se, assim que possível, da situação lamentável. Giacopo dizia a Rosa que a amava incondicionalmente, que nada mais lhe era tão caro no mundo quanto suas montanhesas feições. Tomava-lhe frequentemente de assalto e possuía-a em qualquer lugar, a qualquer hora, desde que Malaquia se encontrasse longe e atarefado com suas lides infantis.
Tornara-se comum, naqueles dias, ver aqui e ali, sobretudo em noites de lua nova, o espectro murmurante da mãe de Malaquia e Giacopo através de uma miríade de presságios. Primeiro fora o celeiro dos Antonelli que pegara fogo. Em seguida, as notícias de outros incêndios sem explicação chegaram da vila vizinha, bem como o perturbador relato de que para os lados da quarta colônia, um incidente igualzinho ao incêndio dos Brindisi havia ocorrido na semana anterior, restando apenas um casal de gêmeos órfãos. Na virada do ano, o céu escureceu com a chegada de uma nuvem de gafanhotos - destas que tudo destroem - e o movimento dos pássaros anunciava uma seca das piores, que fez os mais velhos relembrarem, por sofrimento de véspera, os piores momentos de fome vividos no velho continente, quando a América ainda parecia ser uma terra sem males. Supersticiosos, porém atentos, os colonos já sabiam: algo terrível estava para acontecer na última bandeira antes do nada. Era apenas uma questão de tempo.
Uma correção deve ser feita sobre os modos de Rosa: sua resignação, às vezes, revestia-se por uma profunda ira por Giacopo, responsável, desde o seu ponto de vista, pela sua - e de Malaquia – tiranização. Os momentos em que a besta-fera lhe cobrava os tributos do matrimônio eram sofridos e dolorosos, como se mil agulhas perfurassem-lhe o ventre e um pouco da sua dignidade se dissolvesse na ignóbil troca de fluidos que lá ocorria; Rosa tinha medo de emprenhar e dar continuidade à seqüência de infelizes Brindisi sobre a superfície da Terra. É de se pensar, entrementes, que havia, entre as elementares partículas de seu sangue vêneto qualquer coisa de meridional e siciliano, pois, frente a frente às humilhações diárias de Giacopo, alimentava pelo marido furiosos desejos de vendeta. Paralelamente, deixara de enxergar Malaquia apenas como uma criancinha marota, conseguindo vê-lo também sob a forma de um homem mil vezes melhor que o íncubo fraterno. Passou a imaginar com certo afinco as delicadas mãos de Malaquia a lhe acariciarem, darem ao seu corpo qualquer coisa de afeto que os nodosos dedos de Giacopo nunca foram capazes de fornecer. E aquela pareceu a melhor forma de vingança; o golpe definitivo.
Furtivamente, Rosa deixava todas as noites o a alcova de suas tristes núpcias e se aventurava, corredor afora, até o dormitório de Malaquia, enveredando-o porta a dentro e observando-o cada vez mais de perto. Na primeira vez, ficara somente na porta, acompanhando com certo júbilo o vai-e-vem da respiração do rapaz. Na noite seguinte, chegara mais perto, e cobriu-o. Não de beijos – ainda - mas sim com a coberta que, sorrateiramente, escorregara-lhe pelos ombros, protegendo-o da umidade fria. Aquele misto de sentimentos maternos e femininos não coadunava com seus propósitos vingativos. Era necessário agir logo. E conduzir tudo aquilo a um soberano fim. Passaram-se mais alguns dias em que Rosa ficara apenas nesta angustiosa vigília, esperando somente a hora em que algum espírito malicioso e matreiro desse-lhe a coragem necessária para o ato. No quarto contíguo, Giacopo sonhava com escadas e labirintos intransponíveis, a perda dos dentes molares, o incêndio dos pais. Acordava-se no meio da noite e percebia que Rosa não estava lá. Sabia, portanto, o que estava para acontecer. Resolveu dar tempo ao tempo. Não é de qualquer jeito, pensava ele, que a última bandeira antes do nada voltaria a flamejar.
Era noite de Santo Antônio. Giacopo, cedendo finalmente ao fervor mediterrâneo que pulsava em suas veias, dirigiu-se ao quarto vizinho. Sobre a cama de Malaquia, repousavam, enternecidas e amalgamadas, as duas almas infantis. Os humores de senhor traído, duplamente enganado, subiram-lhe pela garganta. Aproximou-se. Cinzentos olhos lhe fitaram, em silêncio. Da parte destes olhos, não foi oferecida qualquer resistência. Seguiram-se sôfregos suspiros, cadenciados pelos movimentos de imposição enérgica dos roliços dedos sicilianos sobre a jugular. Em segundos, arrefeceram os suspiros. As mãos se afastaram. O mundo se reestabeleceu. Sobre a alma de Giacopo, não pairava qualquer espectro de remorso. Em nome da sua liberdade e seu amor incondicional, operara a justiça do dia da ira, testemunhado, desde o firmamento, por Davi ,o rei, e suas Sibilas.
Antes mesmo do sol nascer, partiram para além da última bandeira antes do nada, tomando uma das estradas que, dali, conduziam a lugar nenhum. Com um pouco de querosene e uma faísca, Giacopo terminou o espetáculo repetindo a façanha do pai. Alguns vizinhos, sobressaltados, acordaram; ninguém, no entanto, se lamentou. Coisas da América. Coisas da fronteira entre o nada e o menos ainda.
Em sua nova casa, para além desta fronteira, Giacopo e Malaquia tornaram a comer do mesmo prato.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A devota


Cordilheira Cantábrica, Espanha


Naqueles dias, em que o mundo conhecido parecia ter sido colocado de cabeça para baixo, apenas uma consternação habitava os pensamentos de Fermín Arantza: conduzir a mãe, pela última vez, à Igreja de Santiago Apóstolo, em Amorebieta, para se confessar. Os dias que restavam para Suri Arantza na companhia dos vivos eram poucos. Os sinais disso eram tão evidentes quanto o rastro dos aviões alemães no céu: de uns tempos para cá, a velha mãe não aquietava a língua um só segundo, destilando, do nascer ao pôr do sol, as cantilenas religiosas, en el “idioma”, que todos, num raio de duzentos quilômetros, saberiam acompanhar.
O problema que se interpunha na mente de Fermín era de ordem prática: o padre confessor havia sido transferido dois anos antes para Amorebieta. Padre Xoaquín, um dos poucos galegos conhecidos que aprenderam o idioma, era, na cabeça de sua mãe, autoridade inviolável em termos de confissão. Suri Arantza jamais se subordinaria aos conselhos de um padre mais jovem. Ainda mais se ele se recusasse a falar euskera e tivesse “aqueles olhos andaluzes” como tinha o então abade da capela local. Era de suma importância, portanto, que o bloqueio dos nacionalistas fosse atravessado para que sua mãe pudesse habitar a eternidade ao lado direito do Senhor.
Desde o dia em que eclodira a guerra, foram poucos os gentios do povoado que tinham visto jorrar sangue ou explosões de pólvora à sua frente. Protegido, à leste e ao sul, por umas colinas baixas; e a norte e à oeste pela coroa dentada do Cantábrico, o vilarejo, até então, havia sentido somente os efeitos secundários do fratricídio peninsular. Os racionamentos de comida e mantimentos já duravam um ano. Os aldeões já tinham se resignado a comer estritamente aquilo o que produziam, tratando produtos enlatados, bem como industrializados de toda sorte, sob o registro de bem-vindas exceções domingueiras. A situação piorara, entretanto, desde que os nacionalistas haviam bloqueado a Estrada Grande, na altura de Amorebieta, por volta do entardecer da quinta-feira de Pentecostes.
Levá-la seria de grande facilidade e simplicidade se a devota não estivesse acometida do furor cantinolento que a fazia repetir, uma atrás da outra, todas as cantigas de Igreja conhecidas em Euskadi, sem que nada, absolutamente nada fizesse-lhe parar. Pelas ordens do generalíssimo, todas as línguas peninsulares que não o castelhano estavam expressamente proibidas em território nacionalista. Mesmo que cruzasse o cerco conduzindo a mãe com sua demente cantoria, o simples fato de andar por Amorebieta ao seu lado poderia produzir graves problemas para ambos; e de problemas, Fermín Arantza já possuía a complicada vida da etxalde. Se todos os problemas do mundo fossem como aqueles da vida pastoril, por exemplo, recolher uma ovelha morta do leito de um rio, a existência seria significativamente menos complicada. Assim pensava Fermín Arantza toda vez que a polícia implicava com algum conhecido seu por chamar as coisas por seu nome de verdade.
Sim, na cabeça de Fermín Arantza, as coisas tinham nomes de verdade e nomes de mentira; os primeiros, evidentemente mais antigos e potentes que os segundos. Não havia motivo que o convencesse para chamar Donostia de San Sebastián, euskera de basco ou mesmo “vascuense” (palavra horrível ouvida de um sujeito local conhecido como “o gramático”), bem como a sagrada etxalde de “fazenda” e substituir o corriqueiro e fluido Egun On por um frio e cortadiço “Buenos dias”. Explicar-se em castelhano, assim como explicar o problema da sua mãe em castelhano para a soldadesca armada, era uma situação do mundo dos possíveis que nada agradava Fermín Arantza, justamente por ter de substituir as palavras autênticas pelas palavras mentirosas.
A Fermín Arantza, que nunca fora muito afeito à atmosfera citadina, restringir seus horizontes à cerca da etxalde nunca havia se configurado como um problema. Até mesmo visitar o povoado, distante a poucas léguas do seu portão, consistia para ele uma tarefa aborrecida, destas que se faz somente por se fazer. Desde que o irmão mais novo Ignacio – ou Iñaki, no idioma – havia partido para um convento em San Sebastián, a responsabilidade pela velha casa e a velha mãe tinha recaído totalmente sobre si. Suri Arantza, aos oitenta e quatro anos de idade, já não enxergava com a mesma eficiência com que alguns anos antes conseguia identificar grãos de milho fugidios nos interstícios das lajotas do assoalho; da mesma forma, seus movimentos, outrora tesos e certeiros, tinham definhado até os simples atos humanos de falar e respirar. Caminhar ainda lhe era possível, uns poucos passos, assim como conduzir a colher de sopa até a boca. Todos os dias, a velha dirigia-se até a latrina sozinha e, pacienciosamente, respeitava o imperativo de suas necessidades corporais. O pouco de autonomia que ainda possuía frente ao filho era celebrada diariamente neste ritual sem mais significações. Praticamente fundido às necessidades da mãe e da lida na etxalde, Fermín Arantza não tinha tempo algum para mulheres, jogar pelota, distribuir insultos etílicos na taverna e todas as atividades mundanas que consumiam o tempo dos varões ilhados pela guerra civil. Bonito e forte, não eram poucas as moças que viam nele um casamento promissor; belos e robustos filhos como Fermín e toda a estirpe dos Arantza, cuja presença naquele úmido vale do Cantábrico remontava ao tempo dos romanos ou dos visigodos. Os Arantza, assim como seus vizinhos Iturbide e os irascíveis Oyarzábal da outra margem do riacho (com os quais os Arantza sempre possuíram disputas demarcatórias), eram o que de mais antigo – depois das pedras – poderia ser encontrado entre aqueles montes tristes.
A velha passava os dias deitada numa cama antiga, que havia assistido ao parto de seus filhos, além de júbilos e infernos da vida conjugal. Da grande janela à sua frente, conseguia ter uma visão bastante ampla das terras da etxalde, embora não conseguisse mais distinguir dos vultos as suas formas essenciais. Fermín, após a lide no campo, passava longas horas velando a mãe, sentado em uma poltrona puída, como que antecipando um funeral.
- Levanta-te, menino, põe-te de pé. – ordenou Suri Arantza – o que está acontecendo lá embaixo, lá no rio? Olha com atenção.
- É uma ovelha, mamãe. – respondeu Fermín – Há tempos que está afogada.
Já se contavam três dias desde que a carcaça do animal havia sido trazida, pela correnteza, à margem do pequeno riacho lindeiro à etxalde dos Arantza. Nem Fermín nem os empregados da propriedade haviam tomado qualquer providência em relação àquilo. Pensaram, primeiramente, que os cachorros tratariam de fazer o trabalho sujo, deglutindo os restos da pobre ovelha como bendiria seu instinto ferino. Os ossos, posteriormente, poderiam ser guardados pelos homens para usufruto próprio. Em tempos de penúria como aqueles, a utilidade de todas coisas – até mesmo as mais absurdas e prescindíveis, em outras épocas – era ponderada com seriedade. “É quando o mundo parece se dilacerar”, pontificava Xabier Iturbide, velho amigo e vizinho dos Arantza, “que as coisas se revestem de mais dignidade”.
Os dias iam se seguindo e o sol se punha cada vez mais triste atrás dos dentes do Cantábrico; o fim de tarde vinha sempre acompanhado do monstruoso rufar das hélices alemãs. Fermín Arantza mal e mal comia, importunado como estava não só pelo problema da missa e da subseqüente confissão, mas também pela intermitente ladainha que se ouvia desde o dormitório da sua mãe. Por alguns momentos esquecia daquilo e era como se a fraquejada voz de Suri Arantza ditasse o ritmo do mundo; de fato, aquelas cantigas eram declamadas na língua do nome verdadeiro de todas as coisas, e nada mais adequado ao mundo e à vida do que o nome que cada coisa tem. No entanto, toda vez que se afastava um pouco da velha casa e podia desfrutar de um silêncio mais profundo, era como se outra voz, ainda mais verdadeira, independente dos homens e das suas guerras civis, falasse ao seu ouvido. Longe da mãe, longe de tudo, apenas na companhia dos grilos e dos imprevisíveis sons do vale e do riacho, era como se ouvisse um idioma mais autêntico que o idioma autêntico: o som das palavras sem boca, diretamente coladas nas coisas que definem.
Toda vez que retornava à casa e ao tecido sonoro produzido por Suri Arantza, Fermín sentia-se novamente jogado sobre a realidade. Aquela língua há pouco ouvida como que se dissipava novamente dentro do espectro das palavras corriqueiras, dentro do universo de nomes e verbos produzidos pelo idioma, a língua falada pela sua estirpe desde eras ancestrais. Volta e meia a mãe interrompia os cânticos e, mirando Fermín, fundo nos olhos, lhe perguntava:
- Levanta-te, menino, põe-te de pé. O que está acontecendo ali? Olha com atenção.
Não era mais a carcaça da ovelha que atraía seu olhar cansado. Ela já havia sido retirada. A persiana da janela mais próxima é que se mexia freneticamente, por causa do vento, dando secos murros na parede. Como era noite de lua cheia, portanto bastante clara, uma tímida luz vinha de fora. Esta luminosidade parca, acoplada ao vai-e-vem da persiana, produzia sombras fantasmagóricas no dormitório da devota.
- É o vento, mamãe. Tua janela está aberta.
Desde que Suri Arantza havia perdido boa parte da visão, Fermín também fazia as vezes de olhos para sua mãe. Aos vultos que ela via aqui e acolá – sobretudo aqueles do lado de fora da janela – ele dava a digna e honesta interpretação. “Vejo agora através das tuas palavras, Fermín”, dizia ela, sempre agradecida, nos momentos de lucidez em que cessava a cantoria. Eles eram diários e repetiam a mesma forma, como se um demônio meridiano tivesse implantado uma loucura sã, ou uma demência matemática no juízo da pobre velha.
Podia ser às cinco horas da tarde ou às sete horas da manhã. Variava. Fermín chegava ao quarto minutos antes e, silenciosamente, acomodava-se na poltrona de feltro, colocada ao lado do leito de sua mãe. A ladainha religiosa arrefecia lentamente e, de repente, após alguns segundos de calado suspense, ela dizia:
- Levanta-te, menino, põe-te de pé. Diz-me o que lá se vê. Diz-me com atenção.
Para a mulher do vizinho Iturbide, o ritual diário não passava de mais uma manifestação do sagrado coração de Cristo, indício de que Suri Arantza necessitava o quanto antes se confessar para sua redenção. Tais coisas oprimiam o coração de Fermín como um cruel torniquete. Antes que achasse uma solução viável para o problema, temia enlouquecer de vez. O vento que sopra do Mar Cantábrico em direção à península, assim que bate nas encostas de Navarra, retorna sobre Euskadi com a úmida força de uma resignação abatida. Em todas as direções que olhava, Fermín Arantza via indícios de seu mundo acabando. A ovelha que encontrara em seu riacho, tomara ciência posteriormente, havia sido abatida por fogo humano, impiedoso. Da guerra das pessoas, também os bichos estavam padecendo. A guerra chegara naquele ponto do mundo que quase ninguém havia conseguido transpor. A língua de Fermín e das ladainhas da sua mãe só havia resistido por força destas contingências, meio naturais, meio humanas, que preservam resquícios da fundação do mundo aqui e acolá. Assim que terminasse a guerra, temia Fermín, também terminaria a sorte de sua gente.
A ininterrupta corrente das efemérides era cada vez mais permeada pela angústia de Fermín e ritmados pela cantilena a São Tiago Apóstolo, às Virgens de Covadonga e Begoña, Santo Antônio e São Sebastião. Os Iturbide, comovidos com a situação do rapaz, trataram então de emprestar-lhe um bem valioso, para que pudesse ouvir, de quando em quando, outras melodias que não aquelas da sua mãe. O enorme rádio de botões circulares foi posicionado ao lado da cama de Suri Arantza, para que também ela pudesse variar um pouco a monotonia dos pensamentos. Naquela altura dos acontecimentos, qualquer mudança de tom representaria um temporário alívio.
Pois que os resultados de tal empresa não foram os melhores, tendo em vista os planos ainda vivos na cabeça de Fermín de cruzar o cerco dos soldados e chegar ao Padre Xabier a tempo de operar a salvação da alma materna. Após um estafante dia de trabalho na plantação contígua à casa da etxalde, Fermín Arantza levou à mãe, como de costume, uma pequena ração de leite, biscoitos e café. Ao entrar no quarto, deparou-se não com as costumeiras cantorias religiosas, mas algo muito pior; muito mais difícil de ser aceito e passar imperceptível pelos aquilinos ouvidos da soldadesca. Com força surpreendente para uma velha entrevada, Suri Arantza, um tom acima da sua voz normal, cantarolava as malditas palavras:
Eusko gudariak gara
Euskadi askatzego
Gerturi daukagu odola
Bere aldez emateko...
Fermín Arantza conhecia muito bem aquela melodia. Quando a sua mãe ainda freqüentava o baile dos humanos sãos, ele volta e meia se dirigia, após as lides na propriedade, para a única cantina do povoado, tendo como objetivo consumir uns tragos. De quando em quando, gente de Bilbao aparecia propalando, numa ridícula versão pomposa do idioma, idéias tão absurdas quanto imaginar um morto insepulto feliz. Era um fato, conhecido e acreditado, que Fermín Arantza nunca gostara muito de gastar sua língua com castelhano e com a gente que o falava naturalmente. Todavia, reconhecia como sacrossanta a união das foralidades de sua gente e Reis Católicos. Questionar tais coisas parecia, para sua mente aldeã, tão sacrílegas quanto jogar aos porcos o sangue eucarístico. Uma das grandes irritações suas com o mundo daqueles dias era justamente o fato dele parecer estar se dilacerando através da suspensão destes liames sagrados; a fidelidade a certos princípios estava impressa em sua alma. “Quando ovelhas mortas aparecem boiando em riachos e pobres velhas são impedidas de se confessar, é porque tudo, absolutamente tudo está perdendo lentamente o seu sentido” – assim dissera Fermín Arantza para o amigo Iturbide, um pouco antes de regressar à casa depois de se aconselhar sobre a novidade da mãe.
O fato preocupante não era agora o idioma em si: era o conteúdo das novas ladainhas da sua mãe. Fermín conseguia imaginar com perfeição a sua carroça avançando pela estrada, sua mãe escondida como podia, nada conseguindo abafar a cantilena que vem da sua boca. O primeiro soldado os aborda. Do fundo da carroça se escuta:
Eusko gudariak gara
Euskadi askatzeko...
Nós somos os soldados bascos
Que a Euskadi libertaremos...
Os soldados entendem rudimentos do idioma. Em todo caso, mesmo não o entendendo, saberiam identificar a melodia republicana. Maldito dia em que os Iturbide haviam lhe emprestado aquele rádio. Melhor seria que os franquistas escutassem Done Jakue e “santo santo santo é o Senhor” do que aquelas palavras que ele mesmo não via razão de serem. A própria palavra gudariak não existia na sua língua normal, herdada dos avós e bisavós. Como bem lhe informaram alguns, tratava-se de mais um dos verbetes criados pela gente de Bilbao para falar de coisas que no mundo de antanho não existiam, mas que como a pólvora, a espingarda, a metralhadora de repetição e a bomba de fósforo, passaram a habitar o mundo das coisas conhecidas e demandavam nomes para si.
Em meio a tudo isso, chegara o frio, e Suri Arantza fora acometida de uma violenta gripe que a colocou por algumas semanas mais próxima da morte do que da vida. Paradoxalmente, a doença acabou dando a Fermín Arantza uns dias de paz, uma vez que a cantoria - agora política - e não religiosa, havia trazido para a etxalde novamente o calar-se das coisas inertes. Temia, no entanto, que a mãe retornasse do silêncio proferindo outras verborragias, quem sabe insultos e palavrões. O medo acabou não se concretizando, mas assim que retornara ao pouco de lucidez que lhe restava, Suri Arantza apenas lhe perguntou:
- Levanta-te menino, põe-te de pé. O que é esta claridade lá fora?
- É a neve, mamãe. O inverno chegou.
Fermín apreciava muito o brancor gelado que cobria os campos naquela época do ano, mas em tempos difíceis, nada pior do que a chegada do frio. O racionamento de víveres tinha se tornado ainda mais cruel. Os nacionalistas que bloqueavam a Estrada Grande haviam organizado, na semana anterior, uma campanha de recolhimento de todo tipo de tecido e peles, nas etxalde dos arredores, para o esforço de guerra. A propriedade dos Arantza não havia ficado de fora. Fermín e os empregados conseguiram esconder apenas uns casacos seus e umas mantas puídas de velhos tempos, de modo que patrão e empregados – os homens – faziam um rodízio semanal de agasalhos para organizar a penúria de modo mais ou menos decente. Na visita dos soldados, Fermín escondera a mãe no galinheiro, para que os castelhanos não ouvissem seus cantares revolucionários. Por vezes sentia toda aquela situação como ridícula, mas há muito as coisas perdiam sua seriedade e modo grave de ser.
Assim que foram embora, percebera que um dos soldados deixara um enorme pala vermelho com as insíginias dos Reis Católicos sobre as almofadas do sofá. “Bem feito, filho da puta”, pensara de si para si em foro íntimo, e ajuntou a nova coberta ao leito da doente mãe. A gente do povoado tornara-se, naquele inverno, uma pequena população de inventores. A miséria fizera com que os objetos ainda não consumidos pelos esforço de guerra se tornassem polivalentes, servindo em todos os lares para muito mais funções do que aquelas em vista das quais vieram ao mundo. Esta situação derivou numa mudança de mentalidade por parte do vizinho Iturbide, que abandonara sua doutrina da dignidade ampliada dos objetos em tempos difíceis e adotara a máxima de que, por força da matança sem sentido, “os objetos haviam todos se prostituído”.
Assim que a primavera deu os primeiros indícios da sua chegada, colorindo pouco a pouco o campo da etxalde com pequeninas flores branco-e-amarelas, Suri Arantza pareceu um pouco mais disposta e aventurou-se para além da cama em passos tímidos e contidos, debruçando-se sobre o parapeito da janela. Fazia tempo que não via o mundo desde aquela perspectiva. Embora conseguisse mirar o exterior desde a sua cama, daquele ponto de vista o mundo de fora ocupava todo espectro do visível, por pior que fossem suas capacidades de distinguir a realidade dos borrões que via aqui e ali. Fermín Arantza a observava desde a poltrona com uma pequena alegria estampada na alma; freqüente nos momentos em que a mãe cessava o torpor melódico e retornava ao mundo das conversações normais.
- Levanta-te, menino, põe-te de pé. O que é isto que se move lá?
Fermín levantou-se um tanto abruptamente. Da poltrona, via uma figura humana crescendo em direção à casa desde o exterior. Cambaleava. E parecia estender a mão. Da janela, pode enxergar melhor. Antes de correr para fora, respondera:
- Mamãe, é um rapaz que chega à nossa casa. Parece exausto!
- Dê ao moço água e pão. Casa com visita, casa com Deus.
Fermín não parecia tão disposto a seguir à risca o ancestral preceito da sua mãe. Naqueles dias, uma visita também poderia significar o inferno de uma casa. Saiu para encontrá-lo, portanto, bastante receoso. Sempre tinha um revólver no coldre por precaução. Ao dar-se de cara com o visitante, percebeu que não se tratava nem de um galego, nem de um castelhano, cântabro ou basco; o surrado uniforme denunciava ser ele um membro das brigadas, inimigo dos nacionalistas e possivelmente estrangeiro. De fato, seus louros cabelos de visigodo e os profundos olhos azuis denunciavam qualquer coisa nórdica; para efeito de satisfação identitária, Fermín decidiu considerá-lo um alemão.
- Que queres aqui? – perguntou em castelhano.
- Água. Comida. – respondeu o visitante, possivelmente dando voz à metade do seu vocabulário em espanhol.
- Me acompanhe.
Fermín sentiu que o gesto para segui-lo havia sido mais eficiente que as palavras ditas.
Conduziu-o até a cozinha. Lá, preparou café forte e deu-lhe duas fatias de pão branco; um punhado de manteiga, o pote de açúcar. “Presunto?”, “Agradecido”. “Geléia?”, “Deus lhe pague”. Para si, Fermín serviu-se de café com um bocado de leite. Percebeu que fazia três anos que não dividia a ampla mesa de madeira com alguém de fora da etxalde.
- Brigadas?
- Sim – assentiu o outro.
- Como você veio parar aqui? Não há um bloqueio dos nacionalistas logo aqui a frente?
- Amorebieta caiu. Divisão italiana matou tudo nacionalista, pá, pá, pá! – esclareceu o visitante, gesticulando, com forte sotaque germânico – Eu perdi meu Kommandant. Escondido na floresta... dois dias caminhando até casa de bom homem.
Enquanto o estrangeiro comia, Fermín Arantza reparava nas cicatrizes que seu corpo de normando sustentava, talvez como troféus. O sujeito comia como se nunca tivesse visto um prato de sopa em toda a sua vida. Tristes tempos, em que um mísero pedaço de pão provoca as mesmas reações que uma barra de ouro.
- O caminho agora está livre? Daqui até Amorebieta não há nacionalistas?
- Não. Amorebieta caiu. Kaputt. Wir haben es geschafft.
- Amigo – disse Arantza após respirar fundo – se você é grato pela minha solidariedade, gostaria de lhe pedir um favor. De gente honesta para gente honesta.
- Por favor.
- Escolte a mim e à minha mãe até a Igreja de São Tiago Apóstolo em Amorebieta. É questão de vida ou morte.
O outro não estava em condições de recusar qualquer pedido. Ao final da tarde já estavam com tudo pronto para a viagem. O coração de Fermín Arantza, pela primeira vez em anos, desde o início daquele cerco sem sentido, via-se pleno de alguma esperança. Cumpriria com orgulho sua função de bom filho: encomendaria de modo justo e decente a boa-morte de sua mãe. Viajariam durante a noite, por ser mais seguro. Embora os franquistas tivessem sido vergonhosamente abatidos por uma força tarefa de voluntários alemães, franceses, argentinos e italianos, era bem possível que alguns deles ainda perambulassem pela mata, humilhados e ansiosos por tomar o sangue de qualquer coisa que viesse a cruzar o seu caminho.
A carroça avançava lentamente pelo curso da Estrada Grande. Cada vez mais longe da etxalde, Fermín Arantza conseguia compreender melhor o estrago sobre o mundo que o fratricídio ibérico estava causando. Não havia árvore, não havia bicho, não havia casa arruinada ao longo do caminho que não gritasse: “salvem-me, pois também sou vítima desta barbárie”. Fermín pensou então em Cristo e o sagrado mistério do sacrifício. Se um homem morre pela humanidade inteira, por que em alguns casos a humanidade inteira parece morrer por força de uns poucos homens?
Os raios de sol já surgiam desde os cumes cantábricos quando sua diligência adentrara às portas da cidade recém tomada. Amorebieta ainda cheirava à peste; o fedor de pólvora, misturado com sangue e madeira queimada impregnava suas vias nasais. O estrangeiro, feliz pela retribuição paga, deixou-se ser levado mais uns metros pela carroça da família Arantza. Simpatizara com aquela velha louca, porém bondosa, que cantara a viagem inteira o hino da Internacional. Antes de se alistar em seu país natal, havia ouvido que não há lugar na península mais pitoresco e verdadeiro que aquelas terras do norte, espremidas entre o mar e a montanha, entre Deus e o Diabo, entre a Espada e a Cruz. Tal raça não parecia habitar a face da terra. Não, pelo menos, no mesmo registro que os demais povos ao redor. A viagem de escolta ao lado dos Arantza havia apenas confirmado esta impressão.
Das poucas ruas de Amorebieta não tomadas pela ocre lama da destruição, a praça central pareceu a Fermín Arantza a mais apropriada para estacionar a carroça e fazer descer, com segurança, sua pobre mãe. Dali até a igreja do Apóstolo eram uns poucos passos. Nada que as pernas de Suri Arantza, num sacrifício final, não estivessem aptas a fazer. Apesar do lento apagamento do mundo, o céu estava, naquele dia, assustadoramente azul. Traços brancos da aeronáutica alemã cruzavam sua imensidão lembrando aos mortais que o terror ainda persistia. Pelo menos para Suri Arantza, as coisas pareciam se encaminhar para um desfecho mais feliz.
Subitamente, mãe e filho escutaram zumbidos de todos os lados. Vozes, muitas vozes, gritavam ordens em duas, três, quatro, infinitas línguas, de infinitas partes do mundo; de todas as partes da Terra, ao menos, que haviam enviado um pouco da sua gente para ter suas vísceras expostas naquela guerra de horrores. “Viva a República!”, ouvia-se à esquerda; “Es lebt die spanischen Republik!”, assoprava o vento à direita; “Por Franco, por España!”, de todos os lados; até mesmo um familiar “Gora Euskal Herria! Gora Euskal Herria askatuta!” conseguiram captar. Os zumbidos das balas eram cada vez mais próximos. Sem poder apressar o passo, Fermín Arantza tentou cobrir a mãe como pôde, puxando-a de um lado para o outro, de porta em porta, janela em janela, procurando defender a ambos da rajada de chuva prateada que os atinge e desperta: ou bem enfrentam o trovejar da guerra, ou bem Suri Arantza morre sem se confessar.
De pronto, avistaram a Igreja de São Tiago Apóstolo cercada de anarquistas. Também ela havia sido tocada pelas balas. Do alto de um buraco na parede, outrora ocupado por um vitral, um soldado atirava na estátua de Cristo Rei. Rapidamente ele os avista, mãe e filho, Fermín coberto por um pala vermelho com a efígie dos Reis Católicos. Cumpridor de ordens, o soldado não titubeia. “Franquista!”, grita, e Suri Arantza suspende a respiração. Seus olhos não conseguem identificar nada mais que movimentos incertos, apenas a imagem de Fermín, jogado ao chão, destaca-se, visível, na tessitura do seu olhar.
- Levanta-te, menino. Põe-te de pé. O que está acontecendo aí frente? Que vozes são estas e que línguas são estas que eu não compreendo?
- É o mundo, mamãe. São as palavras novas, mamãe. Nem elas, nem o mundo, nos pertencem mais.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Inventariando Giscard Jeunet

Meu trabalho é inventariar defuntos. De todas as ingratas profissões surgidas com a guerra, a minha pode ser contada entre as mais tediosas e desprovidas de interesse. Gastar a vida com cadáveres – e ainda por cima uniformizados – é como viver cercado de coisas inertes, silenciosas, às quais a última demonstração de respeito poderia ser uma sepultura; todavia impossível. Minha tarefa dispensa ferramentas sofisticadas. Tenho à minha disposição uma prancheta, um caderno, um lápis, uma caneta-tinteiro, que carrego somente por questão de consciência (que funcionário do grande exército não carrega consigo uma delas?), alfarrábios de outras guerras (à título de comparação numérica) e vinte lacaios de raia-miúda encarragados de identificar, nome por nome, os que caíram por nossa bandeira. São eles, em verdade, que perambulam pelos terrenos desolados das batalhas. Reservo-me a simples tabulação das desgraças e alcunhas dos pobres coitados que encontramos nas mais diversas situações.
Nome, divisão, membro amputado ou ferimento profundo com o qual foi encontrado: estas são as categorias com que componho minhas infindáveis listas. De fato, somos nós, contadores de mortos, bastante ineficientes. Já tivemos épocas melhores. Nestas guerras de hoje, infelizmente, chegamos num dia no campo de batalha e, impossibilitados de completar nosso trabalho ao longo de um ciclo completo de sol, temos de deixar o território sempre incompletamente cartografado, pois a freqüência das matanças a registrar é mais rápida que nosso trabalho contábil.
Ontem vimos um homem coberto pelas vísceras do seu cavalo. Como meus subordinados não encontraram qualquer referência do seu nome, procedência ou vinculação regimentar, o chamamos de “centauro”. Quando servi na campanha peninsular, um basco a nosso serviço me disse que, para o seu brioso povo, tudo o que existe, se existe, tem um nome. É esta lógica que procuro aplicar àqueles que encontramos sem ter como chamá-los. Mesmo à força e jocosamente, criamos alcunhas.
Já estamos muito longe da pátria. Tanto no tempo quanto no espaço. Sinto, às vezes, que meu trabalho já não faz o menor sentido. Pouco importa. Tamanha guerra e tão numerosas mortes já eximiram os homens de procurar qualquer explicação. Para qualquer coisa. Guerras simplesmente acontecem, assim como simplesmente existe o enfadonho trabalho de contar aqueles que tem suas vidas ceifadas por ela.
Há, entretanto certa recorrência que me perturba. Kovno, Vilnus, Smorgoni, Molodezno, Polosk e Minsk: em todos estes campos de batalha – confesso: uns melhores inventariados que outros – há sempre o mesmo soldado “Jeunet, Giscard, 4ª div. Inf.” para ser contabilizado. É impossível que seja sempre o mesmo, embora seja igualmente difícil acreditar que toda uma divisão do exército napoleônico possua o mesmo nome. “A França é grande”, pensava eu a cada novo achado, “é natural que duas ou mais pessoas tenham nomes iguais”. E assim prosseguia a contagem, sem que a minha confiança no tédio das leis universais fosse quebrada.
Ao cruzar a fronteira da Rússia branca, avançando pelas planícies de Smolensk, passamos a encontrar não um, mas vários Giscard Jeunet nas desolações inventariadas. Em Dukhovshnina eram apenas dois. Reafirmamos, eu e os lacaios, embora titubeantes, que coincidências acontecem. Em Wizma, logo em seguida, quatro; em Dorogobouge, oito; em Chjat, 32; às margens do rio Moscowa, dos nossos dez mil soldados caídos, 256 chamavam-se Giscard Jeunet. Próximo ao pequeno barranco em que me escorava, incrédulo, para confeccionar as tabelas do desastre, encontrava-se uma pilha de oito Giscard Jeunets. Eles se amontoavam com a falta de elegância própria aos defuntos insepultos. Tive vontade de entregar-me a Deus e incinerar meus relatórios sem propósito: de que vale ao mundo ao reiteração numérica da morte de um mesmo indivíduo?
No acampamento seguinte, não me furtei a procurar, entre os soldados vivos, aqueles que posteriormente encontraria com a graça de Giscard Jeunet. Nenhum deles respondeu ao nome maldito; nem mesmo aqueles que, feridos de morte no hospital de campanha, assemelhavam-se ao Giscard Jeunet de todas as batalhas grassadas. Tive ainda de substituir dois de meus lacaios neste acampamento. Um deles desertou da companhia ao delirar, cambaleante sobre a neve, que Giscard Jeunet anunciava a chegada do novo Cristo. O outro perdeu-se numa floresta de coníferas gritando à plenos pulmões: “Matem-me, bárbaros! Pois sou Giscard Jeunet!”
Calculo – considerando que venceremos a guerra – que até chegarmos a Moscou serão ao todo 8.192 Giscard Jeunets a serem contabilizados. Isto, claro, se nenhuma outra batalha for travada entre nossa posição atual e a capital da Grande Rússia. Através do modelo estatístico por mim desenvolvido, o número de homônimos a serem encontrados na batalha futura é o resultado da multiplicação de Giscard Jeunets da batalha presente pelo número de Giscard Jeunets da batalha anterior. Isto, claro, tomando-se em consideração apenas os campos desolados inventariados por mim. Sabe se lá se nos outros flancos muitos outros Giscard Jeunets não são encontrados por meus colegas seguindo algoritmos diferentes.
Temo, entretanto, que antes de penetrarmos os subúrbios de Moscou toda a Europa sob bandeira napoleônica se torne Giscard Jeunet. De alguma forma muito estranha já me sinto um deles; Giscard Jeunet entre Giscard Jeunets, esvaziando de mim o que resta de meu nome – já não o lembro mais – com a mesma velocidade que avança, desde a linha do horizonte, uma companhia de cossacos.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

A gripe suína e o monstruoso poder da indústria pecuária


Em 1965, havia nos EUA 53 milhões de porcos espalhados entre mais de um milhão de granjas. Hoje, 65 milhões de porcos concentram-se em 65 mil instalações. Isso significou passar das antiquadas pocilgas a gigantescos infernos fecais nos quais, entre esterco e sob um calor sufocante, prontos a intercambiar agentes patógenos à velocidade de um raio, amontoam-se dezenas de milhares de animais com sistemas imunológicos debilitados. Cientistas advertem sobre o perigo das granjas industriais: a contínua circulação de vírus nestes ambientes aumenta as oportunidades de aparição de novos vírus mais eficientes na transmissão entre humanos. A análise é de Mike Davis,é professor no departamento de História da Universidade da Califórnia (UCI), em Irvine, e um especialista nas relações entre urbanismo e meio ambiente. Ex-caminhoneiro, ex-açogueiro e ex-militante estudantil, Davis é colaborador das revistas New Left Review e The Nation, e autor de vários livros, entre eles Ecologia do Medo, Holocaustos coloniais, O monstro bate a nossa porta (editora Record), e Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles (Boitempo).

O artigo foi, originalmente, publicado pelo jornal The Guardian (27/04/2009), traduzido pelo sítio Sin Permiso e reproduzido pela Carta Maior, 29-04-2009.

Eis o artigo.

A gripe suína mexicana, uma quimera genética provavelmente concebido na lama fecal de um criadouro industrial, ameaça subitamente o mundo inteiro com uma febre. Os brotos na América do Norte revelam uma infecção que está viajando já em maior velocidade do que aquela que viajou a última cepa pandêmica oficial, a gripe de Hong Kong, em 1968.

Roubando o protagonismo de nosso último assassino oficial, o vírus H5N1, este vírus suíno representa uma ameaça de magnitude desconhecida. Parece menos letal que o SARS (Síndrome Respiratória Aguda, na sigla em inglês) em 2003, mas como gripe, poderia resultar mais duradoura que a SARS. Dado que as domesticadas gripes estacionais de tipo “A” matam nada menos do que um milhão de pessoas ao ano, mesmo um modesto incremento de virulência, poderia produzir uma carnificina equivalente a uma guerra importante.

Uma de suas primeiras vítimas foi a fé consoladora, predicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na possibilidade de conter as pandemias com respostas imediatas das burocracias sanitárias e independentemente da qualidade da saúde pública local. Desde as primeiras mortes causadas pelo H5N1 em 1997, em Hong Kong, a OMS, com o apoio da maioria das administrações nacionais de saúde, promoveu uma estratégia centrada na identificação e isolamento de uma cepa pandêmica em seu raio local de eclosão, seguida de uma massiva administração de antivirais e, se disponíveis, vacinas para a população.

Uma legião de céticos criticou esse enfoque de contrainsurgência viral, assinalando que os micróbios podem agora voar ao redor do mundo – quase literalmente no caso da gripe aviária – muito mais rapidamente do que a OMS ou os funcionários locais podem reagir ao foco inicial. Esses especialistas observaram também o caráter primitivo, e às vezes inexistente, da vigilância da interface entre as enfermidades humanas e as animais. Mas o mito de uma intervenção audaciosa, preventiva (e barata) contra a gripe aviária resultou valiosíssimo para a causa dos países ricos que, como os Estados Unidos e a Inglaterra, preferem investir em suas próprias linhas Maginot biológicas, ao invés de incrementar drasticamente a ajuda às frentes epidêmicas avançadas de ultra mar. Tampouco teve preço esse mito para as grandes transnacionais farmacêuticas, envolvidas em uma guerra sem quartel com as exigências dos países em desenvolvimento empenhados em exigir a produção pública de antivirais genéricos fundamentais como o Tamiflu, patenteado pela Roche.

A versão da OMS e dos centros de controle de enfermidades, que já trabalha com a hipótese de uma pandemia, sem maior necessidade novos investimentos massivos em vigilância sanitária, infraestrutura científica e reguladora, saúde pública básica e acesso global a medicamentos vitais, será agora decisivamente posta a prova pela gripe suída e talvez averigüemos que pertence à mesma categoria de gestão de risco que os títulos e obrigações de Madoff. Não é tão difícil que fracasse o sistema de alertas levando em conta que ele simplesmente não existe. Nem sequer na América do Norte e na União Européia.

Não chega a ser surpreendente que o México careça tanto de capacidade como de vontade política para administrar enfermidades avícolas ou pecuárias, pois a situação só é um pouco melhor ao norte da fronteira, onde a vigilância se desfaz em um infeliz mosaico de jurisdições estatais e as grandes empresas pecuárias enfrentam as regras sanitárias com o mesmo desprezo com que tratam aos trabalhadores e aos animais.

Analogamente, uma década inteira de advertências dos cientistas fracassou em garantir transferências de sofisticadas tecnologias virais experimentais aos países situados nas rotas pandêmicas mais prováveis. O México conta com especialistas sanitários de reputação mundial, mas tem que enviar as amostras a um laboratório de Winnipeg para decifrar o genoma do vírus. Assim se perdeu toda uma semana.

Mas ninguém ficou menos alerta que as autoridades de controle de enfermidades em Atlanta. Segundo o Washington Post, o CDC (Centro de Controle de Doenças) só percebeu o problema seis dias depois de o México ter começado a impor medidas de urgência. Não há desculpas para justificar esse atraso. O paradoxal desta gripe suína é que, mesmo que totalmente inesperada, tenha sido prognosticada com grande precisão. Há seis anos, a revista Science publicou um artigo importante mostrando que “após anos de estabilidade, o vírus da gripe suína da América do Norte tinha dado um salto evolutivo vertiginoso”.

Desde sua identificação durante a Grande Depressão, o vírus H1N1 da gripe suína só havia experimentado uma ligeira mudança de seu genoma original. Em 1998, uma variedade muito patógena começou a dizimar porcas em uma granja da Carolina do Norte, e começaram a surgir novas e mais virulentas versões ano após ano, incluindo uma variante do H1N1 que continha os genes do H3N2 (causador da outra gripe de tipo A com capacidade de contágio entre humanos).

Os cientistas entrevistados pela Science mostravam-se preocupados com a possibilidade de que um desses híbridos pudesse se transformar em um vírus de gripe humana – acredita-se que as pandemias de 1957 e de 1968 foram causadas por uma mistura de genes aviários e humanos forjada no interior de organismos de porcos – e defendiam a criação urgente de um sistema oficial de vigilância para a gripe suína: advertência, cabe dizer, que encontrou ouvidos surdos em Washington, que achava mais importante então despejar bilhões de dólares no sumidouro das fantasias bioterroristas.

O que provocou tal aceleração na evolução da gripe suína: Há muito que os estudiosos dos vírus estão convencidos que o sistema de agricultura intensiva da China meridional é o principal vetor da mutação gripal: tanto da “deriva” estacional como do episódico intercâmbio genômico. Mas a industrialização empresarial da produção pecuária rompeu o monopólio natural da China na evolução da gripe. O setor pecuário transformou-se nas últimas décadas em algo que se parece mais com a indústria petroquímica do que com a feliz granja familiar pintada nos livros escolares.

Em 1965, por exemplo, havia nos Estados Unidos 53 milhões de porcos espalhados entre mais de um milhão de granjas. Hoje, 65 milhões de porcos concentram-se em 65 mil instalações. Isso significou passar das antiquadas pocilgas a gigantescos infernos fecais nos quais, entre esterco e sob um calor sufocante, prontos a intercambiar agentes patógenos à velocidade de um raio, amontoam-se dezenas de milhares de animais com sistemas imunológicos muito debilitados.

No ano passado, uma comissão convocada pelo Pew Research Center publicou um informe sobre a “produção animal em granjas industriais”, onde se destacava o agudo perigo de que “a contínua circulação de vírus (...) característica de enormes aviários ou rebanhos aumentasse as oportunidades de aparição de novos vírus mais eficientes na transmissão entre humanos”. A comissão alertou também que o uso promíscuo de antibióticos nas criações de suínos – mais barato que em ambientes humanos – estava propiciando o surgimento de infecções de estafilococos resistentes, enquanto que os resíduos dessas criações geravam cepas de escherichia coli e de pfiesteria (o protozoário que matou um bilhão de peixes nos estuários da Carolina do Norte e contagiou dezenas de pescadores).

Qualquer melhora na ecologia deste novo agente patógeno teria que enfrentar-se com o monstruoso poder dos grandes conglomerados empresariais avícolas e pecuários, como Smithfield Farms (suíno e gado) e Tyson (frangos). A comissão falou de uma obstrução sistemática de suas investigações por parte das grandes empresas, incluídas algumas nada recatadas ameaças de suprimir o financiamento de pesquisadores que cooperaram com a investigação.

Trata-se de uma indústria muito globalizada e com influências políticas. Assim como a gigante avícola Charoen Pokphand, sediada em Bangkok, foi capaz de desbaratar as investigações sobre seu papel na propagação da gripe aviária no sudeste asiático, o mais provável é que a epidemiologia forense do vírus da gripe suína bata de frente contra a pétrea muralha da indústria do porco.

Isso não quer dizer que nunca será encontrada uma acusadora pistola fumegante: já corre o rumor na imprensa mexicana de um epicentro da gripe situado em torno de uma gigantesca filial da Smithfield no estado de Vera Cruz. Mas o mais importante – sobretudo pela persistente ameaça do vírus H5N1 – é a floresta, não as árvores: a fracassada estratégia antipandêmica da OMS, a progressiva deterioração da saúde pública mundial, a mordaça aplicada pelas grandes transnacionais farmacêuticas a medicamentos vitais e a catástrofe planetária que é uma produção pecuária industrializada e ecologicamente bagunçada.



retirado de: www.unisinos.br/ihu

segunda-feira, 27 de abril de 2009



Cidade do México, ontem

A imagem acima é muito significativa.
Ela demonstra como, em sua estrutura mais fundamental (o monopólio legítimo da violência), o aparelho do Estado Moderno se assenta sobre a gerência das populacoes entendidas como comunidades acima de tudo biológicas. É o que tem demonstrado as respostas governamentais à ameaca de uma pandemia suína até agora concentrada no México, mas possível de irradiar-se por todo o globo. Nao é apenas uma questao sanitária ou epidemiológica. Fala-se já sobre efeitos na economia, nas bolsas, nas viagens internacionais e no fluxo de turistas, bens e mercadorias. Cogita-se fecharem fronteiras; paralisa-se a atividade normal de uma das maiores metrópoles do mundo. Isso é sem dúvida um fenômeno multidimensional e evidencia como, ao fim e ao cabo, o mundo em que vivemos está assentado sobre a existência biológica dos cidadaos.
É redundancia falar em vida biológica? Nao num sentido forte. Os gregos utilizavam duas palavras para o que chamamos de vida. Uma delas é "bios". A outra, "zoe". Pela primeira, entendia-se a vida qualificada, possivel de predicacao. Era a vida do logos e da polis, de onde vem a famosa qualificacao do homem como "bios politikos". Através da segunda, denotava-se a existência puramente corporal dos seres vivos, sua continuidade orgânica e o denominador comum entre deuses, homens, animais e plantas.
Como bem demonstra o Giorgio Agamben (na esteira, claro, do Foucault), o estado moderno e sua possibilidade mais íntima, i.e., declarar o estado de excecao (segundo ele, a possibilidade mais radical do Estado e fundamento oculto do seu poder), se assentam justamente sob a prerrogativa de dispor, quando necessário, dos seus cidadaos sob a forma de corpos administráveis, gerenciáveis, como é o caso do que hoje está acontecendo no México e, dependendo do andar da coisa, pode vir a acontecer em outros lugares.
O estado de excecao (total ou, por exemplo, sanitário) permite com que a autoridade constituída disponha e intrometa-se no corpo dos cidadaos da forma que lhe parecer mais conveniente. Sob a lei, somos bíos. Sob o estado de excecao, somos Zoé. É bastante simples e muito deprimente. Principalmente quando pensamos que a lei, ou, melhor dizendo, o estado em que somos "viventes qualificados", só se aplica em condicoes "normais". Para todo o resto - as "excecoes" - faz valer o estado de excecao. E quem identifica quando ultrapassou-se a membrana da normalidade e adentrou-se no estado de excecao? Basicamente, o mesmo que dispoe do poder de declará-lo. Essas suspensoes da normalidade tem acontecido cada vez mais e, perigosamente, sempre sob o argumento da prevencao contra "possiveis ameacas", sejam elas pandemias, vendavais financeiros, terroristas islâmicos ou potenciais agressoes vindas de antigas partes do seu território hoje independentes (como foi o caso, a meu ver, da guerra contra a Geórgia perpetrada pela Russia no ano passado).

É por isso que eu nao vejo melhor predicacao para o atual período histórico como aquele em que a biopolítica se encaminha para a realizacao quase completa de suas possiblidades - quica a anulacao da lei em prol de um estado de excecao perene, o que, ao final das contas, nada mais é que a execao tornada regra. E o nome disso, bem sabemos, é totalizacao.

sexta-feira, 24 de abril de 2009




A política (com "p" minúsculo) tem ficado cada vez mais deprimente no Brasil. Eu nem sei mais o que dizer sobre essa história das passagens, o delegado Protógenes, a troca de farpas no plenário do Supremo. Acho que num ponto desses a gente só pode mesmo tirar sarro. Essa foto, por exemplo, é muito engracada. Do que o Temer e o Mendes estao rindo? Também gostaria de rir com eles. Como é bom tomar o cafezinho de Brasília!
A culpa, claro, é da "imprensa" (adoro entidades etéreas) que está fazendo uma "campanha" (idem) para desacreditar o Congresso Nacional e as instituicoes democráticas (em que sentido democráticas? só porque eles sao eleitos?).
Eu também: se tivesse passagens a granel distribuiria pra quem eu pudesse entre parentes e conhecidos, num cenário em que a regulamentacao é muito vaga e abre espaco para a livre interpretacao. Algumas dessas passagens, inclusive, foram distribuidas em nome de bonitos projetos, como a brava luta da Luciana Genro contra a corrupcao. É assim, me parece, que se justifica o pagamento de bilhetes aéreos ao delegado Protógenes fazer suas palestras Brasil afora.
É igualmente cômico a tentativa desse cara elevar-se à condicao de último justiceiro da república. Evidente que comprar briga com o Daniel Dantas é algo louvável, mas nao justifica excessos. Principalmente aqueles que implicam na quebra generalizada do sigilo de meio mundo.
Esses dias eu vi no site do próprio (http://blogdoprotogenes.com.br/) ou em algum outro lugar - nao lembro - uma animacao que dizia "protege-nos, Protógenes". Alguem pode me dizer o que é isso? Messianismo? Eu tenho muito medo dessas coisas. Ainda mais com esse nome. Protógenes lembra algo pretoriano. Golpes contra a república romana ou coisa que o valha.

sexta-feira, 3 de abril de 2009



Algum lugar entre Zurique e Bellinzona


A Europa Ocidental é composta de uma grande massa continental e três importantes ilhas: Irlanda, Gra-Bretanha e Suica.
A diferenca entre as duas primeiras e a segunda é que elas sim, sao cercadas de água por todos os lados. Consequências políticas e culturais acabam sendo inevitáveis. Por parte da Inglaterra, nao adotar o Euro, por exemplo.
Mas a Suica é um caso raro, uma insularidade absurda. Três línguas oficiais, sendo uma delas um alemao horrivelmente gutural e impronunciável, como se estivesse saindo das próprias vísceras das pessoas.
Mal se crusa a fronteira e já se sente as diferencas por todos os lados, como se os Alpes fossem uma barreira de impermeabilidade e imunidade contra tudo e contra todos. Cuidar do dinheiro alheio, claro, contribui muito para ninguém lhe incomodar. Mas mesmo assim é absurdo, difícil de compreender, um país como a Suica.