segunda-feira, 17 de maio de 2010

Inventariando Giscard Jeunet

Meu trabalho é inventariar defuntos. De todas as ingratas profissões surgidas com a guerra, a minha pode ser contada entre as mais tediosas e desprovidas de interesse. Gastar a vida com cadáveres – e ainda por cima uniformizados – é como viver cercado de coisas inertes, silenciosas, às quais a última demonstração de respeito poderia ser uma sepultura; todavia impossível. Minha tarefa dispensa ferramentas sofisticadas. Tenho à minha disposição uma prancheta, um caderno, um lápis, uma caneta-tinteiro, que carrego somente por questão de consciência (que funcionário do grande exército não carrega consigo uma delas?), alfarrábios de outras guerras (à título de comparação numérica) e vinte lacaios de raia-miúda encarragados de identificar, nome por nome, os que caíram por nossa bandeira. São eles, em verdade, que perambulam pelos terrenos desolados das batalhas. Reservo-me a simples tabulação das desgraças e alcunhas dos pobres coitados que encontramos nas mais diversas situações.
Nome, divisão, membro amputado ou ferimento profundo com o qual foi encontrado: estas são as categorias com que componho minhas infindáveis listas. De fato, somos nós, contadores de mortos, bastante ineficientes. Já tivemos épocas melhores. Nestas guerras de hoje, infelizmente, chegamos num dia no campo de batalha e, impossibilitados de completar nosso trabalho ao longo de um ciclo completo de sol, temos de deixar o território sempre incompletamente cartografado, pois a freqüência das matanças a registrar é mais rápida que nosso trabalho contábil.
Ontem vimos um homem coberto pelas vísceras do seu cavalo. Como meus subordinados não encontraram qualquer referência do seu nome, procedência ou vinculação regimentar, o chamamos de “centauro”. Quando servi na campanha peninsular, um basco a nosso serviço me disse que, para o seu brioso povo, tudo o que existe, se existe, tem um nome. É esta lógica que procuro aplicar àqueles que encontramos sem ter como chamá-los. Mesmo à força e jocosamente, criamos alcunhas.
Já estamos muito longe da pátria. Tanto no tempo quanto no espaço. Sinto, às vezes, que meu trabalho já não faz o menor sentido. Pouco importa. Tamanha guerra e tão numerosas mortes já eximiram os homens de procurar qualquer explicação. Para qualquer coisa. Guerras simplesmente acontecem, assim como simplesmente existe o enfadonho trabalho de contar aqueles que tem suas vidas ceifadas por ela.
Há, entretanto certa recorrência que me perturba. Kovno, Vilnus, Smorgoni, Molodezno, Polosk e Minsk: em todos estes campos de batalha – confesso: uns melhores inventariados que outros – há sempre o mesmo soldado “Jeunet, Giscard, 4ª div. Inf.” para ser contabilizado. É impossível que seja sempre o mesmo, embora seja igualmente difícil acreditar que toda uma divisão do exército napoleônico possua o mesmo nome. “A França é grande”, pensava eu a cada novo achado, “é natural que duas ou mais pessoas tenham nomes iguais”. E assim prosseguia a contagem, sem que a minha confiança no tédio das leis universais fosse quebrada.
Ao cruzar a fronteira da Rússia branca, avançando pelas planícies de Smolensk, passamos a encontrar não um, mas vários Giscard Jeunet nas desolações inventariadas. Em Dukhovshnina eram apenas dois. Reafirmamos, eu e os lacaios, embora titubeantes, que coincidências acontecem. Em Wizma, logo em seguida, quatro; em Dorogobouge, oito; em Chjat, 32; às margens do rio Moscowa, dos nossos dez mil soldados caídos, 256 chamavam-se Giscard Jeunet. Próximo ao pequeno barranco em que me escorava, incrédulo, para confeccionar as tabelas do desastre, encontrava-se uma pilha de oito Giscard Jeunets. Eles se amontoavam com a falta de elegância própria aos defuntos insepultos. Tive vontade de entregar-me a Deus e incinerar meus relatórios sem propósito: de que vale ao mundo ao reiteração numérica da morte de um mesmo indivíduo?
No acampamento seguinte, não me furtei a procurar, entre os soldados vivos, aqueles que posteriormente encontraria com a graça de Giscard Jeunet. Nenhum deles respondeu ao nome maldito; nem mesmo aqueles que, feridos de morte no hospital de campanha, assemelhavam-se ao Giscard Jeunet de todas as batalhas grassadas. Tive ainda de substituir dois de meus lacaios neste acampamento. Um deles desertou da companhia ao delirar, cambaleante sobre a neve, que Giscard Jeunet anunciava a chegada do novo Cristo. O outro perdeu-se numa floresta de coníferas gritando à plenos pulmões: “Matem-me, bárbaros! Pois sou Giscard Jeunet!”
Calculo – considerando que venceremos a guerra – que até chegarmos a Moscou serão ao todo 8.192 Giscard Jeunets a serem contabilizados. Isto, claro, se nenhuma outra batalha for travada entre nossa posição atual e a capital da Grande Rússia. Através do modelo estatístico por mim desenvolvido, o número de homônimos a serem encontrados na batalha futura é o resultado da multiplicação de Giscard Jeunets da batalha presente pelo número de Giscard Jeunets da batalha anterior. Isto, claro, tomando-se em consideração apenas os campos desolados inventariados por mim. Sabe se lá se nos outros flancos muitos outros Giscard Jeunets não são encontrados por meus colegas seguindo algoritmos diferentes.
Temo, entretanto, que antes de penetrarmos os subúrbios de Moscou toda a Europa sob bandeira napoleônica se torne Giscard Jeunet. De alguma forma muito estranha já me sinto um deles; Giscard Jeunet entre Giscard Jeunets, esvaziando de mim o que resta de meu nome – já não o lembro mais – com a mesma velocidade que avança, desde a linha do horizonte, uma companhia de cossacos.

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