terça-feira, 25 de maio de 2010

A última bandeira antes do nada


Dies Irae, dies illa
Solvet saeculum, in favilla
Teste David cum Sybilla!

Dies Irae, século XIII

Os pais de Malaquia e Giacopo haviam morrido. Um terrível incêndio havia consumido a casa velha em que a família morava, no entroncamento de duas estradas que conduziam a lugar nenhum. Para a gente daquele lugar, a propriedade dos Brindisi determinava uma espécie de limite intransponível, a última bandeira antes do nada, a aresta definitiva do mundo conhecido. A geração anterior daquelas pessoas – ponderavam elas – já havia se aventurado o suficiente ao cruzar o oceano e se assentarem, como o fizeram a duras penas, naquelas matas selvagens e carentes de civilização. Tributários, portanto, de uma diáspora forçada, não viam maiores motivos para adentrar ainda mais na imensidão verde à sua frente, repleta de bestas e bugres, que se estendia da cerca dos Brindisi até as portas do reino de Satã.
Ninguém sabia ao certo as causas motivadoras do incêndio. Sabia-se, contudo, que o plano habitava a mente de Nicola Brindisi desde o dia em que anunciara, colérico, que estava a um passo de cometer uma loucura. Era evidente que o incêndio havia sido criminoso. E era patentemente conhecido que o alvo da ígnea ira era a pobre mulher de Nicola. Ele, verdadeiramente, amava-a. Mas amava-a demais, o que fez com que também a detestasse num nível incompreensível para os padrões comuns. Peixe siciliano num cardume de piamonteses e lombardos, Nicola Brindisi destoava significamente da melodia coletiva local. Fleumático, mediterrâneo, enérgico, comprava briga com a mesma facilidade que se alcoolizava e distribuía, entre os conhecidos, pesadas ofensas e injúrias; tinha a imoderada mania de proferir as mais terríveis blasfêmias contra a Virgem e os mistérios da Igreja, então a única garantia que aquela gente possuía de alguma salvação. Dos serviços religiosos, fugia como quem foge da peste. E sobre a esposa, Pierina, descarregava um ciúme horrendo, doente em último grau, que não coadunava com a candura da pacata vida doméstica que ela levava.
Ao contrário do marido, Pierina Brindisi era um daqueles seres talhados com a matéria da compaixão. Resistia estoicamente às intempéries humorais de Nicola e, de quando em quando, encontrava tempo para cometer, aí sim, o único pecado possível para sua composição feminina e misericordiosa: furtava, sorrateiramente, um cigarro de palha do marido e fumava-o rapidamente, sem que ele conseguisse notar a efêmera produção de fumaça proibida. Pierina era vista com bons olhos pelos demais colonos e despertava em todos uma triste piedade. “Pobre mulher”, pensavam, “pertencendo a um homem deste tipo”.
Nos dois meses que antecederam o incêndio, ninguém mais a havia visto. Resignados, os gentios sabiam que as piores intenções de Nicola em breve se efetivariam. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. Ainda mais em caldo tão espesso e intragável quanto o produzido naquela casa. A última aparição pública de ambos deu-se na missa de Páscoa de um ano ruim, em que as guerras civis dos luso-brasileiros, habitantes da vasta planície para além daquelas serras, haviam deixado os colonos em grandes dificuldades. Pierina trajava um vestido sóbrio, além de um véu de renda preta cuidadosamente trançada em voltejos tão sinuosos quanto os vis pensamentos do marido. Ele, evidentemente, não assistira à celebração eucarística. Impaciente como era, ficara do lado de fora contando os minutos para que pudesse conduzi-la de volta a casa.
Três dias depois, aconteceu. Naquela noite, o crepidar da madeira incinerada fundiu-se ao bravio latido dos cachorros assustados e o histérico mugir das vacas. O fogo consumira, muito rápido, o último assentamento humano antes do nada. E com ele, a pobre alma da cândida Pierina, agarrada a um terço e uma imagem de São João. Do lado de fora, Nicola Brindisi tratava agora do próprio aniquilamento, conduzindo, antes disso, os pequenos rebentos Giacopo e Malaquia até a casa do marceneiro Giuseppe Togni para sua redenção. Mesmo tomado pelo demônio da ira, Nicola ainda tinha discernimento suficiente para saber que aquelas pobres crianças nada tinham a ver com os pecados imaginários de sua mãe. Salvá-los, comentava o povo, tinha sido o único ato lúcido daquele homem em vida. Três madrugadas depois, seu corpo de gigante egeu fora encontrado, com um tiro na têmpora, nas matas vizinhas à propriedade. Daquele momento em diante, nada mais restava aos dois meninos que lhes fosse seu, e pertenciam um ao outro de maneira incondicional: a Malaquia, restava Giacopo; a Giacopo,restava Malaquia.
Este era nove anos mais novo que aquele. Quando da tragédia da casa paterna, Malaquia não passava de um choroso e frágil bebê, carente de mãe. Giacopo, ao contrário, havia testemunhado tudo com a virgem retina que se possui, antes dos dez anos, para os arcanos da vida adulta. Em meio aos Togni, calava-se sobre o assunto, mas a família adotiva sabia que naquele garoto habitava, de um jeito ou outro, a imagem da cólera. Como conseqüência disso, o tratamento que dispensavam aos órfãos não era dos melhores, pois temiam que regalias excessivas despertassem neles os frutos temíveis que a semente paterna poderia engendrar. Com o passar dos anos, de fato, mais e mais se evidenciava em Giacopo o semblante do pai; a negra barba mediterrânea anunciava-se em precoces tufos dos treze aos dezesseis e os humores vesuvianos da linhagem paterna desvelavam-se pontualmente aqui e ali. Através de uma férrea disciplina, estas energias de outra maneira incontroláveis foram todas direcionadas para o trabalho, de modo que Giacopo tornou-se um príncipe entre os lavradores da casa Togni.
Malaquia, em contrapartida, reproduzia de forma cada vez mais evidente os traços lombardos e alpinos da gente de sua mãe. Enquanto o irmão enrijecia os músculos, Malaquia cultivava os olhos, o tatear dos dedos, o refinamento dos modos. O primogênito havia se tornado senhor de todas as enxadas; o caçula, mestre da linha e da agulha. Pautava seu dia com finos trabalhos domésticos e tudo aquilo que necessitasse de um apurado controle das minúcias manuais: caligrafia, pequenos restauros em velhas caixas e lampiões, costuras e ornamentos em madeira. Também passava os dias na companhia das mulheres. Os Togni, pais de cinco ítalas beldades, o tratavam como um adorável bibelô de cinzentos olhos à disposição das filhas, um instrumento do seu aprendizado e inculcação das prendas domésticas. Malaquia não era muito diferente, portanto, do que seria um gato de canina fidelidade ou um cão de felino adestramento, enquanto Giacopo vivia seu dia como se operasse a tração de um carro de boi. À pequena Rosa Togni agradavam as mãozinhas finas e delicadas, brancas como papel, com que Malaquia instaurava no mundo seus pequenos artifícios. Para ela, em particular, ele se configurava como um misto de irmão a ser cuidado e amigo a ser cultivado; um verdadeiro bichinho, com o qual expendia as horas a coser e pintar.
Em volta de tanta candura, no entanto, havia um traço bastante preocupante em Malaquia que atiçava temores entre os Togni, o carpinteiro e a mãe. Desde o dia em que aprendera as primeiras palavras, ele às dirigia tão e somente para o irmão Giacopo, seu primogênito e protetor. Este último havia se tornado o único interlocutor do anjinho de estuque, o que reforçava na cabeça do casal adotivo o temor das conseqüências de uma aliança mais forte entre os tributários da herança incendiária. Chegaram a conclusão, portanto, que aquilo não era problema deles, e assim que o primeiro dos infantes atingisse a maioridade, seriam instados a deixar o lar.
Livrar-se daquela família, em verdade, era algo que ao fim e ao cabo agradava a mente de Giacopo Brindisi. No fundo de sua alma etrusca, cultivava um tremendo apelo pela sua irascível liberdade, que via refletida na responsabilidade assumida para com o irmão. Os planos de Giacopo eram francos e diretos: assim que completasse seus dezessete anos – sob o signo de sagitário – reaveriam, por força dos sagrados direitos sanguíneos, o punhado de terra que lhes cabia e a casa incendiada pelo pai. Durante a noite, Giacopo embalava os sonhos do irmão menor com a soberana possibilidade de terem uma casa para si, sem os Togni e seu séquito feminino a tomar-lhes o tempo, o trabalho e as energias de viver. Internamente, Malaquia consternava-se com Rosa e a interrupção das cristalinas horas agradáveis passadas na companhia das agulhas, linhas, brocados, pigmentos e pincéis. Deixá-la, apesar de um evento triste, era, bem a verdade, um exercício necessário de devoção ao irmão e salvador.
Assim que deixaram o teto adotivo, os Brindisi iniciaram a hercúlea tarefa de reconstrução da casa paterna. O esqueleto rochoso, furado aqui e ali por resquícios de portas e janelas, ainda estava lá. Cabia agora preenchê-lo com a carne e as vísceras da vida em comum. Estes foram os únicos momentos da vida de Malaquia em que pegara mais pesado no trabalho, contribuindo, alegremente, com as lides do irmão. Juntos, ergueram paredes e telhados, portas e janelas, balcões e móveis, enfim, um lar.
Nos anos subseqüentes, a união dos irmãos mais e mais se reforçava, e quem enxergava, de longe, a última bandeira antes do nada, notava que dia após dia as paredes daquela casa pareciam se tornar mais grossas e sólidas, bem como seus fundamentos mais rochosos e profundos. Giacopo e Malaquia desenvolveram uma rotina em comum e uns hábitos estranhos. Comer do mesmo prato, por exemplo. Ninguém sabe como isso começou, mas o fato é que, garantidamente, durante as refeições, partilhavam do mesmo mel e do mesmo pão, numa dança coreografada de facas, garfos e colheres que nunca se chocavam entre si. As colubrinas línguas dos colonos, acostumadas a maldizer os outros para fugir do tédio, destilavam que seguramente os irmãos dividiam também o leito, e que sem sombra de dúvida Giacopo encomendaria em breve uns vestidos e pinturas de rosto para o irmão “rainha do lar”.
O festival de maledicências não durou muito tempo. Prontamente notaram os colonos que Giacopo não mediria forças em repetir as façanhas briguentas do pai, se o caso em questão fosse a defesa da honra fraterna. Após um incidente de queixos quebrados no armarinho dos Giacomazzi, os engraçadinhos pararam de importunar o Golias mediterrâneo com considerações daquele tipo, sabendo que, da mesma forma que haviam sofrido com os punhos de Nicola Brindisi, poderiam ter suas línguas perfeitamente controladas pela furiosa tectônica de placas que habitava as profundezas de Giacopo. Malaquia, da sua parte, estabelecia pouquíssimos contatos com o mundo exterior. Além de permanecer mudo para os estranhos, quase nunca saía da casa por eles reconstruída na fronteira do mundo com o lugar-nenhum.
Pois que Giacopo, labutando de sol a sol, tornara esta mesma casa rica e próspera, alcançando, pelo menos neste sentido, o respeito daquela gente menor. Nestes dias de vacas gordas, a casa dos Brindisi deixara de ser a última bandeira antes do nada para se tornar o primeiro estandarte antes de tudo, como se os irmãos fossem os lugares-tenentes de um modo de vida inescrutável e inviolável para o resto dos mortais. O sucesso material dos dois, organicamente vinculados pelos laços de sangue e daqueles hábitos curiosos, encontrou até mesmo admiradores silenciosos entre os colonos de lá. Cada um a seu modo, se tornava ainda mais belo e desenvolvido em suas qualidades. Malaquia, então com vinte e cinco anos, tornara-se uma espécie de pintura delicadamente tracejada sobre uma folha de papel. Seus olhos cinzentos e lisos cabelos louros conferiam-lhe algo de santo, ao mesmo tempo em que a rudeza honesta do irmão fazia-o assemelhar-se a um robusto Davi esculturado. Os dias de ambos eram pautados pelo rico gotejar dos preciosos segundos vividos juntos, comendo do mesmo prato, bebendo do mesmo copo.
Ainda nestes tempos de felicidade, o que sobrava em júbilo entre os Brindisi faltava como desalento na casa dos Togni. O velho carpinteiro, acometido de uma extrema melancolia sem origem manifesta, havia bebido quase tudo que cabia aos seus. O desinteresse pelo mundo e pelo trabalho acabou deixando as femininas flores do seu jardim à revelia das contingências ignaras e cruéis daquela província última, na qual viviam todos sob a marca do exílio. Não tardou, igualmente, para que as dívidas passassem a se acumular sobre a mesa da família Togni. E Giacopo Brindisi, então o mais próspero dos prósperos locais, havia se tornado seu maior credor. Um tanto por misericórdia e um tanto por vingança, fez ele então uma indecorosa proposta:
- O senhor nos dá a Rosa e metade de suas dívidas estarão perdoadas.
Os colonos tinham como hábito tratar suas mulheres, sobretudo as jovens, no mesmo registro em que lidavam com cabeças de boi. Não foi muito difícil, portanto, que o endividado velho ponderasse à favor da proposta, que no caso era quase uma intimidação. E foi assim que, para júbilo do seu irmãozinho, Giacopo resgatou-lhe o bem mais precioso de sua infância, conduzindo Rosa de volta ao seio de sua convivência principesca. Se era do gosto da menina aquele estado de coisas, pouco importava. Na última bandeira antes do nada, a única lei que então havia era o que fluía de Giacopo e Malaquia. Todo o resto, excedia.
Lá estavam, portanto, as três jovens almas submetidas a esta lei. Eram os termos por entre as quais a força desta regulação tácita circulava, o que não tardou a provocar ruídos. Giacopo notou, dentro de si, que um sentimento totalmente diferente de tudo o que até então havia sentido crescia por Rosa. Desde a época de criança achava-a bonita e graciosa. Estava agora notando-a como mulher. Os joguetes e risadas das duas crianças sob seu domínio, que coloriam os dias daquela casa, faziam algo ao mesmo tempo soberano e incômodo manifestar-se entre as suas pernas, como se tratasse de uma contrapartida física à intromissão feminina na tessitura de sua vida viril. Passou a enxergar – talvez imaginar – certos indícios de que também a moça era visitada pelo mesmo demônio que o tentava. Indícios fracos, como furtivos olhares, e indícios fortes, como os visíveis arrepios que o contato de seus dedos de Titã causava sobre a delicada penugem que cobria os braços e o pescoço de Rosa.
Entre estes ímpetos do baixo ventre e a sua realização, interpunha-se, entretanto, a infantil presença de Malaquia. De sol a sol, a vida da moça era preenchida pelas brincadeiras e ocupações domésticas que dividia com o crescido infante. Ou bem corte, ou bem costura; ou bem desenho, ou bem caligrafia. Não havia hora do dia em que Giacopo pudesse abordar o objeto do seu desejo sem que chamasse, por conseqüência, a atenção do irmão. E estas coisas ficaram ainda piores quando percebera, num dia de outubro, que o irmão trocara suas primeiras palavras sonoras com alguém que não ele. Sim, Malaquia passara agora a conversar com Rosa em sua aguda vozinha de coral, e ela não se furtava a ensiná-lo todas as cantigas possíveis na língua daquela terra e na da terra dos avós.
Como este estado de coisas havia se tornado insuportável, Giacopo resolveu valer-se da sua autoridade viril e declarou que daquele momento em diante tudo seria diferente. Contrairia Rosa em matrimônio e toda a rotina estava alterada. Haveria hora certa para começar a brincar e hora certa para parar. Hora para cantar e hora para se calar. Hora para levantar e hora para dormir. No dia seguinte, uma imensa tristeza abateu-se sobre o coração de Malaquia ao perceber que sobre a mesa não haviam dois, mas sim três pratos.
- Agora é assim – pontificou Giacopo – e não poderia ser diferente.
As mudanças introduzidas com aquelas núpcias trouxeram à casa dos Brindisi novamente o espectro de ser ali o último porto conhecido do mundo, lugar onde tudo começa lentamente a se esfalecer. As pessoas da vila eram bastante sensíveis às mudanças de humor vindas daquela casa, e sabiam, pela grossura relativa das paredes e o estado-da-arte da sua grama, se os deuses e demônios conspiravam pela felicidade ou infelicidade dos locais. De algum modo ainda desconhecido para aqueles que lá ainda moram, o que acontecia entre os Brindisi como que se espalhava pelas outras famílias de forma miasmática, e não foram poucas as casas com problemas na época da infeliz conjugação Malaquias – Giacopo – Rosa.
Com o matrimônio do irmão, contraído numa cerimônia triste e sem bênção, Malaquia havia se calado de forma definitiva para o mundo. Nem Giacopo, nem Rosa ouviam-lhe mais. Seus olhos tornaram-se ainda mais aquosos e cinzentos como se sobre eles se concentrassem todos os liames que sustentam o mundo, ao passo que os músculos de Giacopo, profundamente afetado com aquele silêncio inédito por parte do caçula, enrijeciam-se ainda mais na forja de uma agenda de trabalho campeiro mais e mais extensiva. Jogada à revelia daqueles dois mudos, Rosa contava, resignada e melancólica, com a possibilidade de morrer e livrar-se, assim que possível, da situação lamentável. Giacopo dizia a Rosa que a amava incondicionalmente, que nada mais lhe era tão caro no mundo quanto suas montanhesas feições. Tomava-lhe frequentemente de assalto e possuía-a em qualquer lugar, a qualquer hora, desde que Malaquia se encontrasse longe e atarefado com suas lides infantis.
Tornara-se comum, naqueles dias, ver aqui e ali, sobretudo em noites de lua nova, o espectro murmurante da mãe de Malaquia e Giacopo através de uma miríade de presságios. Primeiro fora o celeiro dos Antonelli que pegara fogo. Em seguida, as notícias de outros incêndios sem explicação chegaram da vila vizinha, bem como o perturbador relato de que para os lados da quarta colônia, um incidente igualzinho ao incêndio dos Brindisi havia ocorrido na semana anterior, restando apenas um casal de gêmeos órfãos. Na virada do ano, o céu escureceu com a chegada de uma nuvem de gafanhotos - destas que tudo destroem - e o movimento dos pássaros anunciava uma seca das piores, que fez os mais velhos relembrarem, por sofrimento de véspera, os piores momentos de fome vividos no velho continente, quando a América ainda parecia ser uma terra sem males. Supersticiosos, porém atentos, os colonos já sabiam: algo terrível estava para acontecer na última bandeira antes do nada. Era apenas uma questão de tempo.
Uma correção deve ser feita sobre os modos de Rosa: sua resignação, às vezes, revestia-se por uma profunda ira por Giacopo, responsável, desde o seu ponto de vista, pela sua - e de Malaquia – tiranização. Os momentos em que a besta-fera lhe cobrava os tributos do matrimônio eram sofridos e dolorosos, como se mil agulhas perfurassem-lhe o ventre e um pouco da sua dignidade se dissolvesse na ignóbil troca de fluidos que lá ocorria; Rosa tinha medo de emprenhar e dar continuidade à seqüência de infelizes Brindisi sobre a superfície da Terra. É de se pensar, entrementes, que havia, entre as elementares partículas de seu sangue vêneto qualquer coisa de meridional e siciliano, pois, frente a frente às humilhações diárias de Giacopo, alimentava pelo marido furiosos desejos de vendeta. Paralelamente, deixara de enxergar Malaquia apenas como uma criancinha marota, conseguindo vê-lo também sob a forma de um homem mil vezes melhor que o íncubo fraterno. Passou a imaginar com certo afinco as delicadas mãos de Malaquia a lhe acariciarem, darem ao seu corpo qualquer coisa de afeto que os nodosos dedos de Giacopo nunca foram capazes de fornecer. E aquela pareceu a melhor forma de vingança; o golpe definitivo.
Furtivamente, Rosa deixava todas as noites o a alcova de suas tristes núpcias e se aventurava, corredor afora, até o dormitório de Malaquia, enveredando-o porta a dentro e observando-o cada vez mais de perto. Na primeira vez, ficara somente na porta, acompanhando com certo júbilo o vai-e-vem da respiração do rapaz. Na noite seguinte, chegara mais perto, e cobriu-o. Não de beijos – ainda - mas sim com a coberta que, sorrateiramente, escorregara-lhe pelos ombros, protegendo-o da umidade fria. Aquele misto de sentimentos maternos e femininos não coadunava com seus propósitos vingativos. Era necessário agir logo. E conduzir tudo aquilo a um soberano fim. Passaram-se mais alguns dias em que Rosa ficara apenas nesta angustiosa vigília, esperando somente a hora em que algum espírito malicioso e matreiro desse-lhe a coragem necessária para o ato. No quarto contíguo, Giacopo sonhava com escadas e labirintos intransponíveis, a perda dos dentes molares, o incêndio dos pais. Acordava-se no meio da noite e percebia que Rosa não estava lá. Sabia, portanto, o que estava para acontecer. Resolveu dar tempo ao tempo. Não é de qualquer jeito, pensava ele, que a última bandeira antes do nada voltaria a flamejar.
Era noite de Santo Antônio. Giacopo, cedendo finalmente ao fervor mediterrâneo que pulsava em suas veias, dirigiu-se ao quarto vizinho. Sobre a cama de Malaquia, repousavam, enternecidas e amalgamadas, as duas almas infantis. Os humores de senhor traído, duplamente enganado, subiram-lhe pela garganta. Aproximou-se. Cinzentos olhos lhe fitaram, em silêncio. Da parte destes olhos, não foi oferecida qualquer resistência. Seguiram-se sôfregos suspiros, cadenciados pelos movimentos de imposição enérgica dos roliços dedos sicilianos sobre a jugular. Em segundos, arrefeceram os suspiros. As mãos se afastaram. O mundo se reestabeleceu. Sobre a alma de Giacopo, não pairava qualquer espectro de remorso. Em nome da sua liberdade e seu amor incondicional, operara a justiça do dia da ira, testemunhado, desde o firmamento, por Davi ,o rei, e suas Sibilas.
Antes mesmo do sol nascer, partiram para além da última bandeira antes do nada, tomando uma das estradas que, dali, conduziam a lugar nenhum. Com um pouco de querosene e uma faísca, Giacopo terminou o espetáculo repetindo a façanha do pai. Alguns vizinhos, sobressaltados, acordaram; ninguém, no entanto, se lamentou. Coisas da América. Coisas da fronteira entre o nada e o menos ainda.
Em sua nova casa, para além desta fronteira, Giacopo e Malaquia tornaram a comer do mesmo prato.

Um comentário:

Unknown disse...

Só não é tão bonito quanto o seu autor.