
Como é de praxe com Borges, em cujos contos a gente nunca sabe o que é verdade e o que é ficcao, cometi um erro no post abaixo que vale a pena corrigir.
Nao é o bibliotecário do conto que é cego, mas o próprio Borges - também ele um bibliotecário - o fora na vida real. O primeiro bibliotecário é predicado pelo segundo somente como "imperfeito", o que se refere antes à sua limitacao frente a imensa tarefa de compreender uma biblioteca interminável do que a um acidente físico propriamente dito.
De qualquer forma, vem bem a calhar uma aproximacao entre a cegueira do bibliotecário borges e a finitude do bibliotecário ficcional. Talvez elas sejam a mesma cegueira, ou a mesma finitude, vai se saber. Do ponto de vista da curiosidade literária, em "O nome da rosa", Umberto Eco se aproveitou desse jogo de espelhos e colocou um monge chamado Jorge de Burgos para cuidar da biblioteca de seu mosteiro imaginário.
O monge impede que o conteúdo do suposto segundo volume da "Poética" de Aristóteles seja publicizado por aqueles que o leem. Disso decorre uma serie de assassinatos que William de Baskerville, monge ingles (portanto nominalista) é chamado para desvendar. Borges era um ávido leitor de romances policiais. "O cao dos Baskerville" é o nome de um dos principais livros de Sir A. C. Doyle sobre Sherlock Holmes, que como os monges nominalistas da Idade Média resolvia problemas complicadissimos de logica aplicando a velha regra de nao proliferacao indevida dos entes para falar de realidades simples.
A Borges encantavam as relacoes absurdas entre fatos e personagens da historia e da ficcao: um livro imaginario que comenta um livro verdadeiro; ou mesmo um livro verdadeiro que, em algum dos seus contos, comenta um livro imaginário (como esse segundo volume da Poética, a história mais mal contada da história da filosofia). Vários de seus amigos - e ele mesmo - sao personagens de suas histórias, seja diretamente ("eu e Bioy Casares estávamos...") ou metaforicamente, como o bibliotecário acima citado.
Também lhe encantavam as doutrinas do tempo cíclico e a velha discussao sobre predestinacao e liberdade. Quem sabe estivesse nos seus planos que Umberto Eco escreveria um livro se aproveitando da sua pessoa para criar uma personagem; quem sabe também planejara o meu próprio erro, que o confundiu com seu bibliotecário de mentirinha e, a partir disso, desencadeou-se um enorme texto sobre si, sobre Eco, monges copistas, nominalismo, Sir Arthur Conan Doyle (Consequentemente, isto faria do meu erro apenas um erro aparente, pois, dentro de um grande sistema predeterminado por Borges ele seria o fato necessário para que tal discussao se iniciasse).
E com este tipo de questao-espelho (por que elas só se refletem, nao acrescentam nada de útil à realidade) o labirinto se expande, até o ponto de precisarmos determinar um fim: ligar o aquecedor, por exemplo. Ontem nevou em Tübingen, pela primeira vez na estacao.
2 comentários:
Borges é interessante, ainda mais quando colocamos na intertextualidade da literatura comparada. Vou me valer desse espaço gratuito para matar um pouco o meu tempo e esconder minha inveja por ter perdido a neve. Borges foi importante para evidenciar um problema muito em voga na literatura, principalmente até o século XVIII: o plágio. O que antes era visto como plágio deixou de assim ser considerado com Pierre Menard (que eu insisto em me lembrar do Bonnard). No "Autor del Quixote" ele expõe essa questão comentando sobre Menard, que supostamente teria escrito alguns capítulos do Dom Quixote. Borges transcreve o texto original de Cervantes, e logo abaixo o texto de Menard: aparentemente iguais. Mas não, o arcabouço de conhecimento e histórico de cada personagem passa um significado diferente para cada palavra e expressão. O plágio não existe. Duas pessoas não podem escrever a mesma coisa, por mais "parecidas" que possam ser. Aí entramos em Coetzee com seu Master of Petersburg ou Foe, reescrevendo a história de Robinson Crusoé. A literatura comparada ganha vida. A intertextualidade ganha vida. O plágio cai por terra.
Descobri que estou na Ásia sob 16 graus. Eu quero usar casacos. Quero neve. Perdi neve. Mas é recém outono, o inverno virá branco. Hoffentlich.
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