quinta-feira, 30 de abril de 2009

A gripe suína e o monstruoso poder da indústria pecuária


Em 1965, havia nos EUA 53 milhões de porcos espalhados entre mais de um milhão de granjas. Hoje, 65 milhões de porcos concentram-se em 65 mil instalações. Isso significou passar das antiquadas pocilgas a gigantescos infernos fecais nos quais, entre esterco e sob um calor sufocante, prontos a intercambiar agentes patógenos à velocidade de um raio, amontoam-se dezenas de milhares de animais com sistemas imunológicos debilitados. Cientistas advertem sobre o perigo das granjas industriais: a contínua circulação de vírus nestes ambientes aumenta as oportunidades de aparição de novos vírus mais eficientes na transmissão entre humanos. A análise é de Mike Davis,é professor no departamento de História da Universidade da Califórnia (UCI), em Irvine, e um especialista nas relações entre urbanismo e meio ambiente. Ex-caminhoneiro, ex-açogueiro e ex-militante estudantil, Davis é colaborador das revistas New Left Review e The Nation, e autor de vários livros, entre eles Ecologia do Medo, Holocaustos coloniais, O monstro bate a nossa porta (editora Record), e Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles (Boitempo).

O artigo foi, originalmente, publicado pelo jornal The Guardian (27/04/2009), traduzido pelo sítio Sin Permiso e reproduzido pela Carta Maior, 29-04-2009.

Eis o artigo.

A gripe suína mexicana, uma quimera genética provavelmente concebido na lama fecal de um criadouro industrial, ameaça subitamente o mundo inteiro com uma febre. Os brotos na América do Norte revelam uma infecção que está viajando já em maior velocidade do que aquela que viajou a última cepa pandêmica oficial, a gripe de Hong Kong, em 1968.

Roubando o protagonismo de nosso último assassino oficial, o vírus H5N1, este vírus suíno representa uma ameaça de magnitude desconhecida. Parece menos letal que o SARS (Síndrome Respiratória Aguda, na sigla em inglês) em 2003, mas como gripe, poderia resultar mais duradoura que a SARS. Dado que as domesticadas gripes estacionais de tipo “A” matam nada menos do que um milhão de pessoas ao ano, mesmo um modesto incremento de virulência, poderia produzir uma carnificina equivalente a uma guerra importante.

Uma de suas primeiras vítimas foi a fé consoladora, predicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na possibilidade de conter as pandemias com respostas imediatas das burocracias sanitárias e independentemente da qualidade da saúde pública local. Desde as primeiras mortes causadas pelo H5N1 em 1997, em Hong Kong, a OMS, com o apoio da maioria das administrações nacionais de saúde, promoveu uma estratégia centrada na identificação e isolamento de uma cepa pandêmica em seu raio local de eclosão, seguida de uma massiva administração de antivirais e, se disponíveis, vacinas para a população.

Uma legião de céticos criticou esse enfoque de contrainsurgência viral, assinalando que os micróbios podem agora voar ao redor do mundo – quase literalmente no caso da gripe aviária – muito mais rapidamente do que a OMS ou os funcionários locais podem reagir ao foco inicial. Esses especialistas observaram também o caráter primitivo, e às vezes inexistente, da vigilância da interface entre as enfermidades humanas e as animais. Mas o mito de uma intervenção audaciosa, preventiva (e barata) contra a gripe aviária resultou valiosíssimo para a causa dos países ricos que, como os Estados Unidos e a Inglaterra, preferem investir em suas próprias linhas Maginot biológicas, ao invés de incrementar drasticamente a ajuda às frentes epidêmicas avançadas de ultra mar. Tampouco teve preço esse mito para as grandes transnacionais farmacêuticas, envolvidas em uma guerra sem quartel com as exigências dos países em desenvolvimento empenhados em exigir a produção pública de antivirais genéricos fundamentais como o Tamiflu, patenteado pela Roche.

A versão da OMS e dos centros de controle de enfermidades, que já trabalha com a hipótese de uma pandemia, sem maior necessidade novos investimentos massivos em vigilância sanitária, infraestrutura científica e reguladora, saúde pública básica e acesso global a medicamentos vitais, será agora decisivamente posta a prova pela gripe suída e talvez averigüemos que pertence à mesma categoria de gestão de risco que os títulos e obrigações de Madoff. Não é tão difícil que fracasse o sistema de alertas levando em conta que ele simplesmente não existe. Nem sequer na América do Norte e na União Européia.

Não chega a ser surpreendente que o México careça tanto de capacidade como de vontade política para administrar enfermidades avícolas ou pecuárias, pois a situação só é um pouco melhor ao norte da fronteira, onde a vigilância se desfaz em um infeliz mosaico de jurisdições estatais e as grandes empresas pecuárias enfrentam as regras sanitárias com o mesmo desprezo com que tratam aos trabalhadores e aos animais.

Analogamente, uma década inteira de advertências dos cientistas fracassou em garantir transferências de sofisticadas tecnologias virais experimentais aos países situados nas rotas pandêmicas mais prováveis. O México conta com especialistas sanitários de reputação mundial, mas tem que enviar as amostras a um laboratório de Winnipeg para decifrar o genoma do vírus. Assim se perdeu toda uma semana.

Mas ninguém ficou menos alerta que as autoridades de controle de enfermidades em Atlanta. Segundo o Washington Post, o CDC (Centro de Controle de Doenças) só percebeu o problema seis dias depois de o México ter começado a impor medidas de urgência. Não há desculpas para justificar esse atraso. O paradoxal desta gripe suína é que, mesmo que totalmente inesperada, tenha sido prognosticada com grande precisão. Há seis anos, a revista Science publicou um artigo importante mostrando que “após anos de estabilidade, o vírus da gripe suína da América do Norte tinha dado um salto evolutivo vertiginoso”.

Desde sua identificação durante a Grande Depressão, o vírus H1N1 da gripe suína só havia experimentado uma ligeira mudança de seu genoma original. Em 1998, uma variedade muito patógena começou a dizimar porcas em uma granja da Carolina do Norte, e começaram a surgir novas e mais virulentas versões ano após ano, incluindo uma variante do H1N1 que continha os genes do H3N2 (causador da outra gripe de tipo A com capacidade de contágio entre humanos).

Os cientistas entrevistados pela Science mostravam-se preocupados com a possibilidade de que um desses híbridos pudesse se transformar em um vírus de gripe humana – acredita-se que as pandemias de 1957 e de 1968 foram causadas por uma mistura de genes aviários e humanos forjada no interior de organismos de porcos – e defendiam a criação urgente de um sistema oficial de vigilância para a gripe suína: advertência, cabe dizer, que encontrou ouvidos surdos em Washington, que achava mais importante então despejar bilhões de dólares no sumidouro das fantasias bioterroristas.

O que provocou tal aceleração na evolução da gripe suína: Há muito que os estudiosos dos vírus estão convencidos que o sistema de agricultura intensiva da China meridional é o principal vetor da mutação gripal: tanto da “deriva” estacional como do episódico intercâmbio genômico. Mas a industrialização empresarial da produção pecuária rompeu o monopólio natural da China na evolução da gripe. O setor pecuário transformou-se nas últimas décadas em algo que se parece mais com a indústria petroquímica do que com a feliz granja familiar pintada nos livros escolares.

Em 1965, por exemplo, havia nos Estados Unidos 53 milhões de porcos espalhados entre mais de um milhão de granjas. Hoje, 65 milhões de porcos concentram-se em 65 mil instalações. Isso significou passar das antiquadas pocilgas a gigantescos infernos fecais nos quais, entre esterco e sob um calor sufocante, prontos a intercambiar agentes patógenos à velocidade de um raio, amontoam-se dezenas de milhares de animais com sistemas imunológicos muito debilitados.

No ano passado, uma comissão convocada pelo Pew Research Center publicou um informe sobre a “produção animal em granjas industriais”, onde se destacava o agudo perigo de que “a contínua circulação de vírus (...) característica de enormes aviários ou rebanhos aumentasse as oportunidades de aparição de novos vírus mais eficientes na transmissão entre humanos”. A comissão alertou também que o uso promíscuo de antibióticos nas criações de suínos – mais barato que em ambientes humanos – estava propiciando o surgimento de infecções de estafilococos resistentes, enquanto que os resíduos dessas criações geravam cepas de escherichia coli e de pfiesteria (o protozoário que matou um bilhão de peixes nos estuários da Carolina do Norte e contagiou dezenas de pescadores).

Qualquer melhora na ecologia deste novo agente patógeno teria que enfrentar-se com o monstruoso poder dos grandes conglomerados empresariais avícolas e pecuários, como Smithfield Farms (suíno e gado) e Tyson (frangos). A comissão falou de uma obstrução sistemática de suas investigações por parte das grandes empresas, incluídas algumas nada recatadas ameaças de suprimir o financiamento de pesquisadores que cooperaram com a investigação.

Trata-se de uma indústria muito globalizada e com influências políticas. Assim como a gigante avícola Charoen Pokphand, sediada em Bangkok, foi capaz de desbaratar as investigações sobre seu papel na propagação da gripe aviária no sudeste asiático, o mais provável é que a epidemiologia forense do vírus da gripe suína bata de frente contra a pétrea muralha da indústria do porco.

Isso não quer dizer que nunca será encontrada uma acusadora pistola fumegante: já corre o rumor na imprensa mexicana de um epicentro da gripe situado em torno de uma gigantesca filial da Smithfield no estado de Vera Cruz. Mas o mais importante – sobretudo pela persistente ameaça do vírus H5N1 – é a floresta, não as árvores: a fracassada estratégia antipandêmica da OMS, a progressiva deterioração da saúde pública mundial, a mordaça aplicada pelas grandes transnacionais farmacêuticas a medicamentos vitais e a catástrofe planetária que é uma produção pecuária industrializada e ecologicamente bagunçada.



retirado de: www.unisinos.br/ihu

segunda-feira, 27 de abril de 2009



Cidade do México, ontem

A imagem acima é muito significativa.
Ela demonstra como, em sua estrutura mais fundamental (o monopólio legítimo da violência), o aparelho do Estado Moderno se assenta sobre a gerência das populacoes entendidas como comunidades acima de tudo biológicas. É o que tem demonstrado as respostas governamentais à ameaca de uma pandemia suína até agora concentrada no México, mas possível de irradiar-se por todo o globo. Nao é apenas uma questao sanitária ou epidemiológica. Fala-se já sobre efeitos na economia, nas bolsas, nas viagens internacionais e no fluxo de turistas, bens e mercadorias. Cogita-se fecharem fronteiras; paralisa-se a atividade normal de uma das maiores metrópoles do mundo. Isso é sem dúvida um fenômeno multidimensional e evidencia como, ao fim e ao cabo, o mundo em que vivemos está assentado sobre a existência biológica dos cidadaos.
É redundancia falar em vida biológica? Nao num sentido forte. Os gregos utilizavam duas palavras para o que chamamos de vida. Uma delas é "bios". A outra, "zoe". Pela primeira, entendia-se a vida qualificada, possivel de predicacao. Era a vida do logos e da polis, de onde vem a famosa qualificacao do homem como "bios politikos". Através da segunda, denotava-se a existência puramente corporal dos seres vivos, sua continuidade orgânica e o denominador comum entre deuses, homens, animais e plantas.
Como bem demonstra o Giorgio Agamben (na esteira, claro, do Foucault), o estado moderno e sua possibilidade mais íntima, i.e., declarar o estado de excecao (segundo ele, a possibilidade mais radical do Estado e fundamento oculto do seu poder), se assentam justamente sob a prerrogativa de dispor, quando necessário, dos seus cidadaos sob a forma de corpos administráveis, gerenciáveis, como é o caso do que hoje está acontecendo no México e, dependendo do andar da coisa, pode vir a acontecer em outros lugares.
O estado de excecao (total ou, por exemplo, sanitário) permite com que a autoridade constituída disponha e intrometa-se no corpo dos cidadaos da forma que lhe parecer mais conveniente. Sob a lei, somos bíos. Sob o estado de excecao, somos Zoé. É bastante simples e muito deprimente. Principalmente quando pensamos que a lei, ou, melhor dizendo, o estado em que somos "viventes qualificados", só se aplica em condicoes "normais". Para todo o resto - as "excecoes" - faz valer o estado de excecao. E quem identifica quando ultrapassou-se a membrana da normalidade e adentrou-se no estado de excecao? Basicamente, o mesmo que dispoe do poder de declará-lo. Essas suspensoes da normalidade tem acontecido cada vez mais e, perigosamente, sempre sob o argumento da prevencao contra "possiveis ameacas", sejam elas pandemias, vendavais financeiros, terroristas islâmicos ou potenciais agressoes vindas de antigas partes do seu território hoje independentes (como foi o caso, a meu ver, da guerra contra a Geórgia perpetrada pela Russia no ano passado).

É por isso que eu nao vejo melhor predicacao para o atual período histórico como aquele em que a biopolítica se encaminha para a realizacao quase completa de suas possiblidades - quica a anulacao da lei em prol de um estado de excecao perene, o que, ao final das contas, nada mais é que a execao tornada regra. E o nome disso, bem sabemos, é totalizacao.

sexta-feira, 24 de abril de 2009




A política (com "p" minúsculo) tem ficado cada vez mais deprimente no Brasil. Eu nem sei mais o que dizer sobre essa história das passagens, o delegado Protógenes, a troca de farpas no plenário do Supremo. Acho que num ponto desses a gente só pode mesmo tirar sarro. Essa foto, por exemplo, é muito engracada. Do que o Temer e o Mendes estao rindo? Também gostaria de rir com eles. Como é bom tomar o cafezinho de Brasília!
A culpa, claro, é da "imprensa" (adoro entidades etéreas) que está fazendo uma "campanha" (idem) para desacreditar o Congresso Nacional e as instituicoes democráticas (em que sentido democráticas? só porque eles sao eleitos?).
Eu também: se tivesse passagens a granel distribuiria pra quem eu pudesse entre parentes e conhecidos, num cenário em que a regulamentacao é muito vaga e abre espaco para a livre interpretacao. Algumas dessas passagens, inclusive, foram distribuidas em nome de bonitos projetos, como a brava luta da Luciana Genro contra a corrupcao. É assim, me parece, que se justifica o pagamento de bilhetes aéreos ao delegado Protógenes fazer suas palestras Brasil afora.
É igualmente cômico a tentativa desse cara elevar-se à condicao de último justiceiro da república. Evidente que comprar briga com o Daniel Dantas é algo louvável, mas nao justifica excessos. Principalmente aqueles que implicam na quebra generalizada do sigilo de meio mundo.
Esses dias eu vi no site do próprio (http://blogdoprotogenes.com.br/) ou em algum outro lugar - nao lembro - uma animacao que dizia "protege-nos, Protógenes". Alguem pode me dizer o que é isso? Messianismo? Eu tenho muito medo dessas coisas. Ainda mais com esse nome. Protógenes lembra algo pretoriano. Golpes contra a república romana ou coisa que o valha.

sexta-feira, 3 de abril de 2009



Algum lugar entre Zurique e Bellinzona


A Europa Ocidental é composta de uma grande massa continental e três importantes ilhas: Irlanda, Gra-Bretanha e Suica.
A diferenca entre as duas primeiras e a segunda é que elas sim, sao cercadas de água por todos os lados. Consequências políticas e culturais acabam sendo inevitáveis. Por parte da Inglaterra, nao adotar o Euro, por exemplo.
Mas a Suica é um caso raro, uma insularidade absurda. Três línguas oficiais, sendo uma delas um alemao horrivelmente gutural e impronunciável, como se estivesse saindo das próprias vísceras das pessoas.
Mal se crusa a fronteira e já se sente as diferencas por todos os lados, como se os Alpes fossem uma barreira de impermeabilidade e imunidade contra tudo e contra todos. Cuidar do dinheiro alheio, claro, contribui muito para ninguém lhe incomodar. Mas mesmo assim é absurdo, difícil de compreender, um país como a Suica.

domingo, 8 de março de 2009

Debaixo do sol

Alguém bastante pessimista (ou pré-historicamente existencialista) deve ter escrito o Eclesiastes, um dos sete livros sapienciais do Antigo Testamento. A primeira parte dele chama-se "As ilusões da vida humana" e contém passagens memoráveis, dignas de comparação, quem sabe, somente com as Confissões de Agostinho ou algo do gênero. É possível que se pergunte o que, afinal de contas, estarei querendo eu ao falar de Bíblia num momento em que arcebispos excomungam médicos e em que o Papa, sabe se lá porque motivos, reabilita gente da pior escória conservadora para dentro da igreja. Minha própria capacidade de exegese bíblica poderia, igualmente, ser colocada em questão. O que sei eu sobre tudo isso? Admito, nada. No entanto, enquanto documento filosófico, o Eclesiastes torna-se matéria muito boa para o pensamento - eu poderia até ousar dizer que seja uma das melhores que tenho entrado em contato ultimamente. O que me fez abrir a Bíblia e procurar algo para ler, confesso, foi um misto de tédio e interesse pela tradição cristã ressucitado após a leitura de As confissões de Agostinho do professor Johannes Brachtendorf, cujo seminário tive a oportunidade de acompanhar em Tübingen. Do conteúdo do livro, todavia, não adveio nenhuma referência específica ao Eclesiastes ou qualquer outra passagem do Velho ou do Novo Testamento, mas sim um interesse geral pelo livro que há bons 2000 anos tem influenciado o mundo de formas tão distintas que vão desde a redenção pessoal até a guerra mutiladora de corpos e comunidades.
O que me fez procurar o Eclesiastes foi uma vaga lembrança da passagem bíblica que prefacia O tempo e o vento, do Érico Veríssimo:

"Uma geração passa, outra lhe sucede, enquanto a terra permanece sempre a mesma" (Ecl 1,4).

Por si só interessante, ela ganha um sentido ainda muito maior e significativo se lida em relação com os versículos que a sucedem e precedem. Eles configuram, em conjunto, a primeira das grandes reflexões do Eclesiastes, ou "a precariedade da vida humana":

"Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?
Uma geração passa, a outra lhe sucede, enquanto a terra permanece sempre a mesma.
O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar a seu lugar, donde novamente torna a nascer.
Dirigindo-se para o sul e voltando para o norte,
ora para cá, pra para lá vai soprando o vento,
para retomar novamente seu curso.
Todos os rios correm para o mar, e contudo o mar não transborda;
para lá onde os rios vão,
para lá tornam a ir.
Tudo é penoso, difícil de homem explicar.
A vista não se cansa de ver, nem o ouvido se farta de ouvir.
O que foi, será;
o que aconteceu, acontecerá:
nada já de novo debaixo do sol."

O que se afigura aqui? Sem dúvida nenhuma, uma idéia bastante específica do que é ser homem, ser alguém "debaixo do sol". Mas o que está debaixo do sol?
É interessante notar quantas vezes essa expressão aparece no Eclesiastes. O seu autor - o livro é um tanto testemunhal - diz que viu muitas coisas debaixo do sol: injustiça, iniqüidade, falsos sábios, sofrimento e privação. "Debaixo do sol" também é a terra que permanece a mesma enquanto as gerações sucedem uma a outra, é o lugar onde um dia aparecemos e no outro deixaremos de existir, nossa casa e único habitat possível - ou haveria, para o homem, algum lugar que não seja debaixo do sol?

E o que se faz debaixo do sol?
O primeiro versículo é muito claro: trabalha-se e afadiga-se. O Eclesiastes então pergunta, atonitamente, o que retiramos desse trabalhar e se afadigar. Ganhamos alguma coisa além de uma terra que nos é indiferente e que engole as gerações, uma atrás da outra, como se fossem poeira que se dissipa no vento ou uma palavra, que para existir, deve deixar cada uma de suas sílabas ser pronunciada e, ao fim, não existir mais? Como fruir os frutos do trabalho numa condição finita, e limitada, debaixo do sol?

"E detestei todo o trabalho com que me afadiguei debaixo do sol, pois tenho que deixar tudo para um sucessor. E quem sabe se ele será sábio ou insensato? Ele herdará o que me custou tanto esforço e habilidade debaixo do sol. Também isso é ilusão." (Ecl 2,18-19).

O drama do homem incapaz de fruir do seu trabalho não é prerrogativa apenas do pai que deixa tudo que tem ao filho de pretensões duvidosas, mas de toda a espécie humana que labora debaixo do sol. Estaria aqui a raiz da utopia marxista de uma redenção através do trabalho que restitui a quem trabalha o esforço dos seus braços? Há sempre um outro que usufrui daquilo que eu produzi. Produção e fruição nunca são coetâneas:

"Todo o trabalho do homem é para sua boca, e contudo seu apetite nunca está satisfeito" (Ecl 6, 7).

Contra aquele que trabalha existe o tempo, indiferente ao seu sofrimento (O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar a seu lugar, donde novamente torna a nascer.) e incessantemente duradouro: Todos os rios correm para o mar, e contudo o mar não transborda;
para lá onde os rios vão,
para lá tornam a ir.

Todavia, o tempo não é por necessidade um inimigo do homem; basta empregá-lo com sabedoria e compreender o que podemos tirar dele, no momento oportuno, de acordo com o que somos e o que fizemos debaixo do sol. Daí surge uma das passagens mais bonitas de todo Eclesiastes e quem sabe de toda a Bíblia (pretensão de que não conhece nem cinco por cento dela):

"Tempo de nascer.
e tempo de morrer;
tempo de plantar,
e tempo de colher a planta.
Tempo de matar,
e tempo de sarar;
tempo de destruir,
e tempo de construir.
Tempo de chorar,
e tempo de rir;
tempo de gemer,
e tempo de dançar.
Tempo de atirar pedras,
e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar,
e tempo de se separar.
Tempo de buscar,
e tempo de perder;
tempo de guardar,
e tempo de jogar fora.
Tempo de rasgar,
e tempo de costurar:
tempo de calar,
e tempo de falar.
Tempo de amar,
e tempo de odiar;
tempo de guerra,
e tempo de paz." (Ecl 3, 2-8).

Que controle temos sobre tudo isso? Quando reconhecemos quando é tempo de calar ou tempo de falar? Aí está, creio eu, a diferença proposta pelo Eclesiastes entre o sábio e o insensato. Ela aparece repetidas vezes, mas não é trazida à luz senão através de formulações espirituosas, quase provérbios populares. Tanto o sábio quanto o insensato são criaturas (inelutável concepção judaica) irremediavelmente debaixo do sol. O que lhes espera no final, tenham eles as diferenças que tenham, é a mesma coisa: a terra que engole gerações. A pergunta que se faz é, portanto, o que fazer, "debaixo do sol" e como tornar isso algo suportável, uma vez que o trabalho, como todo o resto, não passa de uma grande ilusão. O sábio entende e aproveita o tempo, não o trabalho. Do trabalho, ele usa apenas aquilo que no tempo é aproveitável. E é feliz nesse seu aproveitar:

"Em tempo de felicidade sê feliz!
Em tempo de infelicidade, pondera." (Ecl 7,14);

O sábio é aquele que escuta e retribui o chamado do tempo. Nada mais que isso e simples assim. O tempo é a dimensão soberana que, submetida à condição de mero compasso do trabalho, perde aquilo que tem de essencial e originário e vulgariza-se, quantifica-se, mortificando os homens e dispondo-os como coisas ao trabalho, enquanto é o trabalho que deveria dispor-lhe coisas.
Em relação ao trabalho, o Eclesiastes é enfático em ressaltar sua capacidade de produzir coisas. Coisas que se destinam à fruição e ao consumo, pois "todo trabalho do homem é para sua boca". Aqui fulgura certo materialismo interessante de ser notado no mundo veterotestamental. Mas o trabalho não pode ser um fim em si mesmo. Ele deve apontar para algo além dele, sob pena de afundar-se no caráter nefasto e aprisionante do tempo, que oprime o homem e o faz lembrar, continuamente, sua condição finita e insuficiente.

Meu horizonte de interpretação é precário e raso. Meu conhecimento de exegese bíblica, repito, equivale a nada. Não poderia tomar essas reflexões como terminadas e muito menos definitivas sobre aquilo que o Eclesiastes tem a dizer. O fato é que ele incita a pensar, o que por si só já é um excelente começo. Um começo do que fazer, afinal de contas, debaixo do sol.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009



Marktplatz, Tübingen

Já chegando o final do inverno durante a Idade Média, as pessoas costumavam estar aborrecidas, cansadas e muitas vezes delirantes de tanto frio. Haviam aqueles que enxergavam bruxas e demônios. Principalmente uma mulher de aparência nefasta, cujo rosto era bicolor e cuja tarefa metafísica nada mais era que espalhar o inverno sobre toda a superfície da terra.
A resposta humana aos demônios, como de praxe, era vestir a carapuca deles e rir de sua triste condicao de criaturas infernais. Assumir o papel do inimigo sempre foi uma boa forma de vencê-lo, exorcizá-lo. Daí nasceu, pelo menos entre as tribos do que hoje é o sul da Alemanha, o carnaval.
Com a anuência do cristianismo (de outro modo, perderiam fiéis cordeiros), a festa perdurou durante séculos, e até hoje os suábios vestem-se com a roupa das suas bruxas e demônios para mandar o inverno embora; se nao conscientemente, pelo menos replicando quase uma eternidade depois aquilo que seus antepassados uma vez fizeram.

A diferenca é que hoje, creio eu, ninguém esteja delirando de frio, e a funcao expiatória da festa, outrora imediata, necessária e eficaz, transformou-se em mais um folguedo popular a figurar em catálogos etnográficos.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009





"Questionar o governo, questionar os costumes e questionar o próprio Congresso. Estamos aqui com essa missão.”

José Sarney (PMDB-AP), presidente do Senado

O Sarney deve ser um crítico de costumes tao bom quando o Papa na parada gay.
Quero só ver.
Ê Brasil.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Crise


Outubro, Madri


Uma cadeia de causalidades levada às suas últimas conseqüências conduz, como é bem sabido, à origem de todas as coisas: o que acaba nao explicando nada e nao responsabilizando ninguém.
Outra boa forma de desresponsabilizacao é conferir às "conjunturas" a culpa de tudo. Em termos macrosociológicos e macroeconômicos isso volta e meia acontece, até porque, inegavelmente, grandes estruturas possuem um relativo grau de autonomia perante os atores que a compoem. Todavia, sempre há espaco para aquilo que se chama princípio da alternatividade nas acoes humanas; é dizer, frente a uma decisao importante, poder ter escolhido fazer outra coisa. As estruturas funcionam autonomamente e muitas vezes alienadas das vontades individuais, mas a arquitetura delas - e principalmente a da estrutura econômica - está baseada em alguns pontos nodais que dependem da escolha humana. Pesem todas as pressoes conjunturais, fazer trade off ainda é uma faculdade do ser humano. E é nisso, conseqüentemente, que reside a responsabilidade.
Foi pensando desta forma que o Guardian da Inglaterra sugeriu a seguinte lista de "culpados" pela crise atual:

A quem culpar (segundo o The Guardian)







1) Alan Greenspan, chairman do Fed, banco central dos EUA, entre 1987 e 2006

2) Mervyn King, presidente do Bank of England (banco central da Inglaterra)

3) Bill Clinton, ex-presidente dos EUA

4) Gordon Brown, primeiro-ministro da Grã-Bretanha

5) George W Bush, ex-presidente dos EUA

6) Phil Gramm, ex-senador do Texas

7) Abby Cohen, chefe estrategista do banco Goldman Sachs

8) Kathleen Corbet, ex-presidente do Standard & Poor’s

9) "Hank" Greenberg, chefão do grupo de seguros AIG

10) Andy Hornby, ex-chefe do HBOS

11) Sir Fred Goodwin, ex-chefe do banco britânico RBS

12) Steve Crawshaw, ex-chefe do B&B

13) Adam Applegarth, ex-chefe da Northern Rock

14) Dick Fuld, chefe executivo do banco Lehman Brothers

15) Ralph Cioffi e Matthew Tannin

16) Lewis Ranieri, financista

17) Joseph Cassasno, da AIG Financial Products

18) Chuck Prince, ex-chefe do grupo bancário Citi

19) Angelo Mozilo, chefe da Countrywide Financial

20) Stan O’Neal, ex-chefe do Merrill Lynch

21) Jimmy Cayne, ex-chefe da Bear Stearns

22) Christopher Dodd, chefe do comitê de bancos do Senado dos EUA

23) Geir Haarde, primeiro-ministro da Islândia

24) John Tiner, ex-executivo da FSA (autoridade de serviços financeiros dos EUA)

25) O consumidor americano

Na minha singela opiniao, este último - que também é o mais genérico de todos - deveria ser o primeiro.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009



Patras, Grécia


El tiempo es la substancia de que estoy hecho.
El tiempo es un río que me arrebata,
Pero yo soy el río;
Es un tigre que me destroza,
Pero yo soy el tigre;
Es un fuego que me consume,
Pero yo soy el fuego.

Jorge Luis Borges

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Mind the gap




Underground, Londres

À fim de que ninguém perca seu pé no vao existente entre a plataforma e o trem, uma voz no Metrô de Londres fica constantemente repetindo o aviso "Mind the Gap". Esta frase já está tao incorporada à vida do londrino que passou a sinonimizar o próprio Underground da capital britânica. É um aviso curto e suscinto - quase uma questao de estímulo-resposta.

Do outro lado do Canal da Mancha, a mesma advertência poderia figurar num poema: "Attencion a la marche en descendant du train". A pessoa já poderia ter perdido o pé antes de escutar tudo até o final.

Cruzando o Reno, lê-se na Alemanha "Ausstiegvorsicht": informacao sintética e condensada, mas agressiva para os olhos que a lêem e aos ouvidos que a escutam. Além de totalmente incompreensível para quem nao sabe nada (ou muito pouco) de alemao.

Em Madri, uma voz feminina furiosa incita os passageiros a terem "cuidado para no meteren el pié entre coche y andén" nas "estaciones en curva". Aqui se obedece mais pelo tom enérgico do aviso do que pelo medo da amputacao.

É por estes e outros motivos que, de todas as línguas indo-européias, o inglês seja aquela mais próxima de um código do que de um idioma. Se um robô tivesse língua, essa língua seria o inglês. O mesmo vale pra um computador que falasse ou escrevesse sozinho.

Nao é a toa que uma filosofia tao lógica quanto a analítica tenha surgido e vigore por lá. Pena que ler Russell nao seja tao legal quanto passear em Londres.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Outono / Inverno



Platanenallee, Neckarinsel, Tübingen

Até agora minha estacao favorita na Alemanha é o outono. O inverno, a princípio, parece muito bonito, mas logo em seguida a vista comeca a cansar de tanto branco; o corpo cansar de tanto frio. É o inverno mais gelado dos últimos anos no velho mundo. Semana passada o termômetro ficou patinando na dezena negativa e a Rússia assustando o resto da Europa com a ameaca de cortar o nosso gás. Afora que a neve, apesar de bonita, origina uma série de incômodos. Houve um dia em que os ônibus simplesmente nao conseguiram subir até a parte alta da cidade. Quando ela se acumula nas calcadas e as pessoas pisam, surge uma massa informe e escura de sujeira e gelo que nossos tênis e calcados insistem em convidar para dentro de casa. O inverno também é pródigo nas poucas horas e mínima intensidade que o sol brilha quando resolve dar minimamente as caras. Anoitece pelas quatro da tarde e, quando é meio dia, nao se distancia quase nem dois palmos do horizonte. É uma esfera amarelada e tímida, retraída como toda a gente fica com essa temperatura. Acaba sendo bom para ficar em casa ou rolar montanha abaixo em trenozinhos de madeira ou plástico, que sao aparentemente a única diversao em espaco público - terminados os mercados de natal e construídos todos os bonecos de neve - que os alemaes se propoem a fazer com gosto nessa época.
O outono é que é o bom. Por mim, eu viveria num outono alemao eterno.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Bonaparte



Les Invalides, Paris

A escultura acima é uma das várias alegorias ao código napoleônico que velam o corpo do sujeito de 1,67 m que durante o século XIX destronou praticamente todas as monarquias relevantes do continente Europeu e expandiu, ainda que sob a chaga da Guerra, os princípios da revolucao de 1789 para além das fronteiras francesas e mudou para sempre a história da Europa e do Mundo.
Napoleao entrou em Madri acompanhado de 305.000 soldados. Algo como meia Stuttgart marchando de uniforme. Outros milhares foram enviados para batalhas célebres como Austerlitz e Jena; muitos outros pereceram em derrotas como Trafalgar e Waterloo. Tudo nessa época soa como gigantesco, fáustico, além da imaginacao. Contra Napoleao, um outro gigante também lutava. Talvez deficitário de uma figura emblemática para inflar os brios dos seus soldados e da sua populacao, mas em todo caso uma verdadeira máquina de guerra, composta por 880 navios bem organizados e munidos, com a possibilidade constante de repor as perdas materiais através da sua impressionante atividade industrial. Num tempo em que Bonaparte arrasava o continente a Gra-Bretanha o oceano, nao havia mais espaco para nacoes carolas e supersticiosas como Portugal. Ao contrário dos seus pares soberanos (vários deles seus parentes), que acabaram bem ou mal descoroados, D. Joao fez a escolha mais acertada: reconhecer sua pequenez, deixar que o palco fosse ocupado pelos atores principais e retirar-se para longe, bem longe, de tudo isso. Bom para si, que nao perdeu o cetro. Ruim para o povo portugues, que viu a si próprio ser arruinado nos anos de Guerra Peninsular, na maior onda de miséria e fome já vivenciada em território luso.

Napoelao pode ser entendido como um dos fundadores da Modernidade, nao necessariamente naquilo que ela possui de melhor. Antes dele, o poder dos soberanos se justificava de forma muito mais simples e contentadora. Havia uma fronteira, um vácuo metafísico entre soberano e povo - simplesmente nao compartilhavam da mesma substância, da mesma natureza. Em algum ponto obscuro do tempo (ou fora dele, se considerarmos as doutrinas em que o poder real emanava de Deus, e portanto, de uma esfera "fora" do tempo, alocada na eternidade), foi conferida à uma sorte de homens o direito de comandar os outros e era conveniente que se pensasse assim. Com a equalizacao de todos os sujeitos, através do humanismo iluminista, ser um soberano absoluto tornou-se muito complicado. Alguns poderiam até mesmo pensar que isto seria impossível. Mas Napoleao provou que nao: é possível ser imperador e cantar a marselhesa ao mesmo tempo. Como fazê-lo? Sendo simplesmente Bonaparte - alguém cujo mito pessoal conviveu com o próprio ser humano de carne e osso: fazer-se imperador, ao invés de receber o título de nascenca; tornar-se com isso um emblema do homem que se auto-constrói, da infalibilidade do projeto pessoal, do criador e inventor da própria existência, que nao mede esforcos para realizar a construcao daquilo que se é.
Basta observar a imagem acima exposta. Nela, o imperador encontra-se no centro, impassível, quase um romano, mais forte e mais virilizado do que provavelmente fora. À sua direita, um anciao (filósofo?) lhe oferece o código de Justiniano. Sua mao recolhe desta lei antiga, porém sábia, apenas o mínimo necessário para a sacramentacao do outro código, à sua esquerda, que, como diz a inscricao abaixo "foi mais benfazejo à Franca que todo o amontoado de leis que o precederam".
A lei de Napoleao é benfazeja porque é "simples". Por simples, se entende o fato de que é compreensível a todos. Por "compreensível a todos" se entende o fato de que sob Napoleao a alfabetizacao se generalizou. Por "generalizacao da alfabetizacao" se entende o fato de todos poderem ler a letra da lei.
A alegoria prossegue à esquerda com um livro velho e desforme, composto por todas as demais leis, oriundas do costume, sendo rasgado violentamente por uma figura feminina. O passado nao mais importa. Curiosamente, o único passado relevante é o dos romanos, de onde provém a lei justiniana. A lei agora é limpa, clara, única e soberana. É impossível nao reconhecer sua validade. E sua validade está na ponta do indicador de Bonaparte, ponta esta que indica a quem se dirige seu valor: "pour tous".