domingo, 8 de março de 2009

Debaixo do sol

Alguém bastante pessimista (ou pré-historicamente existencialista) deve ter escrito o Eclesiastes, um dos sete livros sapienciais do Antigo Testamento. A primeira parte dele chama-se "As ilusões da vida humana" e contém passagens memoráveis, dignas de comparação, quem sabe, somente com as Confissões de Agostinho ou algo do gênero. É possível que se pergunte o que, afinal de contas, estarei querendo eu ao falar de Bíblia num momento em que arcebispos excomungam médicos e em que o Papa, sabe se lá porque motivos, reabilita gente da pior escória conservadora para dentro da igreja. Minha própria capacidade de exegese bíblica poderia, igualmente, ser colocada em questão. O que sei eu sobre tudo isso? Admito, nada. No entanto, enquanto documento filosófico, o Eclesiastes torna-se matéria muito boa para o pensamento - eu poderia até ousar dizer que seja uma das melhores que tenho entrado em contato ultimamente. O que me fez abrir a Bíblia e procurar algo para ler, confesso, foi um misto de tédio e interesse pela tradição cristã ressucitado após a leitura de As confissões de Agostinho do professor Johannes Brachtendorf, cujo seminário tive a oportunidade de acompanhar em Tübingen. Do conteúdo do livro, todavia, não adveio nenhuma referência específica ao Eclesiastes ou qualquer outra passagem do Velho ou do Novo Testamento, mas sim um interesse geral pelo livro que há bons 2000 anos tem influenciado o mundo de formas tão distintas que vão desde a redenção pessoal até a guerra mutiladora de corpos e comunidades.
O que me fez procurar o Eclesiastes foi uma vaga lembrança da passagem bíblica que prefacia O tempo e o vento, do Érico Veríssimo:

"Uma geração passa, outra lhe sucede, enquanto a terra permanece sempre a mesma" (Ecl 1,4).

Por si só interessante, ela ganha um sentido ainda muito maior e significativo se lida em relação com os versículos que a sucedem e precedem. Eles configuram, em conjunto, a primeira das grandes reflexões do Eclesiastes, ou "a precariedade da vida humana":

"Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol?
Uma geração passa, a outra lhe sucede, enquanto a terra permanece sempre a mesma.
O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar a seu lugar, donde novamente torna a nascer.
Dirigindo-se para o sul e voltando para o norte,
ora para cá, pra para lá vai soprando o vento,
para retomar novamente seu curso.
Todos os rios correm para o mar, e contudo o mar não transborda;
para lá onde os rios vão,
para lá tornam a ir.
Tudo é penoso, difícil de homem explicar.
A vista não se cansa de ver, nem o ouvido se farta de ouvir.
O que foi, será;
o que aconteceu, acontecerá:
nada já de novo debaixo do sol."

O que se afigura aqui? Sem dúvida nenhuma, uma idéia bastante específica do que é ser homem, ser alguém "debaixo do sol". Mas o que está debaixo do sol?
É interessante notar quantas vezes essa expressão aparece no Eclesiastes. O seu autor - o livro é um tanto testemunhal - diz que viu muitas coisas debaixo do sol: injustiça, iniqüidade, falsos sábios, sofrimento e privação. "Debaixo do sol" também é a terra que permanece a mesma enquanto as gerações sucedem uma a outra, é o lugar onde um dia aparecemos e no outro deixaremos de existir, nossa casa e único habitat possível - ou haveria, para o homem, algum lugar que não seja debaixo do sol?

E o que se faz debaixo do sol?
O primeiro versículo é muito claro: trabalha-se e afadiga-se. O Eclesiastes então pergunta, atonitamente, o que retiramos desse trabalhar e se afadigar. Ganhamos alguma coisa além de uma terra que nos é indiferente e que engole as gerações, uma atrás da outra, como se fossem poeira que se dissipa no vento ou uma palavra, que para existir, deve deixar cada uma de suas sílabas ser pronunciada e, ao fim, não existir mais? Como fruir os frutos do trabalho numa condição finita, e limitada, debaixo do sol?

"E detestei todo o trabalho com que me afadiguei debaixo do sol, pois tenho que deixar tudo para um sucessor. E quem sabe se ele será sábio ou insensato? Ele herdará o que me custou tanto esforço e habilidade debaixo do sol. Também isso é ilusão." (Ecl 2,18-19).

O drama do homem incapaz de fruir do seu trabalho não é prerrogativa apenas do pai que deixa tudo que tem ao filho de pretensões duvidosas, mas de toda a espécie humana que labora debaixo do sol. Estaria aqui a raiz da utopia marxista de uma redenção através do trabalho que restitui a quem trabalha o esforço dos seus braços? Há sempre um outro que usufrui daquilo que eu produzi. Produção e fruição nunca são coetâneas:

"Todo o trabalho do homem é para sua boca, e contudo seu apetite nunca está satisfeito" (Ecl 6, 7).

Contra aquele que trabalha existe o tempo, indiferente ao seu sofrimento (O sol se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar a seu lugar, donde novamente torna a nascer.) e incessantemente duradouro: Todos os rios correm para o mar, e contudo o mar não transborda;
para lá onde os rios vão,
para lá tornam a ir.

Todavia, o tempo não é por necessidade um inimigo do homem; basta empregá-lo com sabedoria e compreender o que podemos tirar dele, no momento oportuno, de acordo com o que somos e o que fizemos debaixo do sol. Daí surge uma das passagens mais bonitas de todo Eclesiastes e quem sabe de toda a Bíblia (pretensão de que não conhece nem cinco por cento dela):

"Tempo de nascer.
e tempo de morrer;
tempo de plantar,
e tempo de colher a planta.
Tempo de matar,
e tempo de sarar;
tempo de destruir,
e tempo de construir.
Tempo de chorar,
e tempo de rir;
tempo de gemer,
e tempo de dançar.
Tempo de atirar pedras,
e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar,
e tempo de se separar.
Tempo de buscar,
e tempo de perder;
tempo de guardar,
e tempo de jogar fora.
Tempo de rasgar,
e tempo de costurar:
tempo de calar,
e tempo de falar.
Tempo de amar,
e tempo de odiar;
tempo de guerra,
e tempo de paz." (Ecl 3, 2-8).

Que controle temos sobre tudo isso? Quando reconhecemos quando é tempo de calar ou tempo de falar? Aí está, creio eu, a diferença proposta pelo Eclesiastes entre o sábio e o insensato. Ela aparece repetidas vezes, mas não é trazida à luz senão através de formulações espirituosas, quase provérbios populares. Tanto o sábio quanto o insensato são criaturas (inelutável concepção judaica) irremediavelmente debaixo do sol. O que lhes espera no final, tenham eles as diferenças que tenham, é a mesma coisa: a terra que engole gerações. A pergunta que se faz é, portanto, o que fazer, "debaixo do sol" e como tornar isso algo suportável, uma vez que o trabalho, como todo o resto, não passa de uma grande ilusão. O sábio entende e aproveita o tempo, não o trabalho. Do trabalho, ele usa apenas aquilo que no tempo é aproveitável. E é feliz nesse seu aproveitar:

"Em tempo de felicidade sê feliz!
Em tempo de infelicidade, pondera." (Ecl 7,14);

O sábio é aquele que escuta e retribui o chamado do tempo. Nada mais que isso e simples assim. O tempo é a dimensão soberana que, submetida à condição de mero compasso do trabalho, perde aquilo que tem de essencial e originário e vulgariza-se, quantifica-se, mortificando os homens e dispondo-os como coisas ao trabalho, enquanto é o trabalho que deveria dispor-lhe coisas.
Em relação ao trabalho, o Eclesiastes é enfático em ressaltar sua capacidade de produzir coisas. Coisas que se destinam à fruição e ao consumo, pois "todo trabalho do homem é para sua boca". Aqui fulgura certo materialismo interessante de ser notado no mundo veterotestamental. Mas o trabalho não pode ser um fim em si mesmo. Ele deve apontar para algo além dele, sob pena de afundar-se no caráter nefasto e aprisionante do tempo, que oprime o homem e o faz lembrar, continuamente, sua condição finita e insuficiente.

Meu horizonte de interpretação é precário e raso. Meu conhecimento de exegese bíblica, repito, equivale a nada. Não poderia tomar essas reflexões como terminadas e muito menos definitivas sobre aquilo que o Eclesiastes tem a dizer. O fato é que ele incita a pensar, o que por si só já é um excelente começo. Um começo do que fazer, afinal de contas, debaixo do sol.

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