Les Invalides, Paris
A escultura acima é uma das várias alegorias ao código napoleônico que velam o corpo do sujeito de 1,67 m que durante o século XIX destronou praticamente todas as monarquias relevantes do continente Europeu e expandiu, ainda que sob a chaga da Guerra, os princípios da revolucao de 1789 para além das fronteiras francesas e mudou para sempre a história da Europa e do Mundo.
Napoleao entrou em Madri acompanhado de 305.000 soldados. Algo como meia Stuttgart marchando de uniforme. Outros milhares foram enviados para batalhas célebres como Austerlitz e Jena; muitos outros pereceram em derrotas como Trafalgar e Waterloo. Tudo nessa época soa como gigantesco, fáustico, além da imaginacao. Contra Napoleao, um outro gigante também lutava. Talvez deficitário de uma figura emblemática para inflar os brios dos seus soldados e da sua populacao, mas em todo caso uma verdadeira máquina de guerra, composta por 880 navios bem organizados e munidos, com a possibilidade constante de repor as perdas materiais através da sua impressionante atividade industrial. Num tempo em que Bonaparte arrasava o continente a Gra-Bretanha o oceano, nao havia mais espaco para nacoes carolas e supersticiosas como Portugal. Ao contrário dos seus pares soberanos (vários deles seus parentes), que acabaram bem ou mal descoroados, D. Joao fez a escolha mais acertada: reconhecer sua pequenez, deixar que o palco fosse ocupado pelos atores principais e retirar-se para longe, bem longe, de tudo isso. Bom para si, que nao perdeu o cetro. Ruim para o povo portugues, que viu a si próprio ser arruinado nos anos de Guerra Peninsular, na maior onda de miséria e fome já vivenciada em território luso.
Napoelao pode ser entendido como um dos fundadores da Modernidade, nao necessariamente naquilo que ela possui de melhor. Antes dele, o poder dos soberanos se justificava de forma muito mais simples e contentadora. Havia uma fronteira, um vácuo metafísico entre soberano e povo - simplesmente nao compartilhavam da mesma substância, da mesma natureza. Em algum ponto obscuro do tempo (ou fora dele, se considerarmos as doutrinas em que o poder real emanava de Deus, e portanto, de uma esfera "fora" do tempo, alocada na eternidade), foi conferida à uma sorte de homens o direito de comandar os outros e era conveniente que se pensasse assim. Com a equalizacao de todos os sujeitos, através do humanismo iluminista, ser um soberano absoluto tornou-se muito complicado. Alguns poderiam até mesmo pensar que isto seria impossível. Mas Napoleao provou que nao: é possível ser imperador e cantar a marselhesa ao mesmo tempo. Como fazê-lo? Sendo simplesmente Bonaparte - alguém cujo mito pessoal conviveu com o próprio ser humano de carne e osso: fazer-se imperador, ao invés de receber o título de nascenca; tornar-se com isso um emblema do homem que se auto-constrói, da infalibilidade do projeto pessoal, do criador e inventor da própria existência, que nao mede esforcos para realizar a construcao daquilo que se é.
Basta observar a imagem acima exposta. Nela, o imperador encontra-se no centro, impassível, quase um romano, mais forte e mais virilizado do que provavelmente fora. À sua direita, um anciao (filósofo?) lhe oferece o código de Justiniano. Sua mao recolhe desta lei antiga, porém sábia, apenas o mínimo necessário para a sacramentacao do outro código, à sua esquerda, que, como diz a inscricao abaixo "foi mais benfazejo à Franca que todo o amontoado de leis que o precederam".
A lei de Napoleao é benfazeja porque é "simples". Por simples, se entende o fato de que é compreensível a todos. Por "compreensível a todos" se entende o fato de que sob Napoleao a alfabetizacao se generalizou. Por "generalizacao da alfabetizacao" se entende o fato de todos poderem ler a letra da lei.
A alegoria prossegue à esquerda com um livro velho e desforme, composto por todas as demais leis, oriundas do costume, sendo rasgado violentamente por uma figura feminina. O passado nao mais importa. Curiosamente, o único passado relevante é o dos romanos, de onde provém a lei justiniana. A lei agora é limpa, clara, única e soberana. É impossível nao reconhecer sua validade. E sua validade está na ponta do indicador de Bonaparte, ponta esta que indica a quem se dirige seu valor: "pour tous".
2 comentários:
Napoleão é um dos personagens mais interessantes de se estudar... e as maneiras como ele justifica e legitima o seu poder também são interessantíssimas. Todas as diferenciações que ele busca das antigas instituições bourbônicas...
E D. João eu considero um injustiçado. Ele conseguiu não perder a coroa e não ser derrotado por Bonaparte, coisa que outros mais badalados não conseguiram. E a Guerra Peninsular, na medida em que se arrastou até o fim da Era Napoleônica, foi um dos fatores que desgastaram o Império Napoleônico. O próprio corso diz, nas suas memórias: "A Península Ibérica foi a úlcera que corroeu o meu império...
Mas enfim, historicisses a parte, Invalides é do caralho, não? E eu não consigo deixar de achar paradoxal que o lugar encontrado para zelar Napoleão seja uma igreja construída em homenagem a Luís XIV...
Mas para mim a sepultura mais bonita lá dentro aínda é a do Foch...
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